domingo, 20 de julho de 2008

Ficções - Jorge Luís Borges



Sempre que viajo, procuro ao máximo conhecer aspectos da cultura local, e para alguém que lê tanto como eu uma das primeiras coisas é buscar apreciar a literatura do lugar. Estava com viagem marcada para as terras argentinas, tudo devidamente organizado, os guias consultados, pesos adquiridos, quando me toquei que faltava uma coisa bem importante. Tive vergonha em imaginar que chegaria ao país vizinho sem ter tido contato com absolutamente nada que tivera sido escrito através dos séculos de suas história. Na verdade, já havia lido um grande clássico argentino, Martín Fierro, a epopéia gauchesca, mas já faz muitos anos e numa versão adaptada, na época em que eu estava começando os estudos de espanhol, por isso não lembro muito bem, não conta. Então resolvi escolher logo o maior representante da literatura argentina, Jorge Luís Borges.

Borges é um autor mundialmente conhecido, expoente da alta literatura, mas eu o conhecia apenas porque diversas vezes eu havia visto seu nome no caderno “Prosa e Verso”, do jornal O Globo, na coluna “Meu Clássico”, onde famosos e quase famosos indicam seu livro predileto. A priori tenho um pouco de receio com estes livros e autores muito elogiados, tendo em vista experiências passadas, com caras como Joyce e García Marquez. Mesmo assim, resolvi pegar “Ficções”, até porque era o único livro argentino disponível na estante do meu tio, primeira opção nessas horas.

“Ficções” é um livro de contos, o que reduz a possibilidade de eu não gostar e parar no meio – para um cara escrever um livro de contos e nenhum prestar, tem que ser péssimo, péssimo escrito. Com este estado de espírito, comecei o primeiro conto, com o singular nome “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”. Nas primeiras páginas, uma linguagem confusa, difícil, sem objetividade. Pensei, aquilo não ia terminar muito bem, mas alguma coisa me fazia não largar o conto. Eu estava sendo envolvido aos poucos, como se estivesse sendo seduzido para uma armadilha, até que fui agarrado definitivamente no último parágrafo. Aquilo me chocou! Li imediatamente o segundo, “A aproximação de Almotásim”, e ocorreu a mesma coisa, e foi assim através das páginas do livro. A cada conto que começava, Borges me enganava, fazia eu pensar, “ah, este é fraco!”, o que me obrigava a humildemente pedir desculpas ao final. Começam confusos, e só são compreendidos nas últimas páginas (um deles exatamente na última linha!). Não menos do que três contos eu reli imediatamente após terminar para pegar as sutilezas passadas despercebidas.

Já na metade do livro, reparei meu erro inicial: Borges não tem uma escrita difícil nem rebuscada, mas sim sofisticada, inteligente, como se estivesse utilizando sua incrível capacidade de contar histórias para brincar comigo, rir da minha cara, me sacanear, mas de um modo cordial e amigável, sem querer me humilhar. São freqüentes as citações a artistas, personalidades históricas e filósofos, sobretudo Schopenhauer e Lewis Carrol. Longe da superficialidade de contos que existem simplesmente para contar histórias, transbordam das páginas de “Ficções” discussões interessantíssimas sobre abstrações como o tempo, a realidade, o conhecimento, e sobram recursos da genial mente de Borges, que desenvolve suas tramas cercadas de preocupações com a lógica e a simetria – neste caso, influência clara de Carrol, autor de “Alice no País das Maravilhas”.

Sobre os dois primeiros contos citados acima, Borges explica no prólogo: “Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem e apresentar um resumo, um comentário.” É isso mesmo, tanto nestes dois contos como em “O exame da obra de Herbert Quain” o autor inventa livros e os comenta, de forma tão genial que, na época, leitores portenhos tentavam encomendar os tais livros em livrarias londrinas! Apesar de não ser o melhor conto “O exame da obra de Herbert Quain” deixa clara a capacidade de Borges no sentido da ironia: “Herbert Quain morreu em Roscommon; comprovei sem espanto que o ‘Suplemento Literário’ do Times apenas lhe concedeu meia coluna de piedade necrológica, na qual não há epíteto laudatório que não esteja corrigido (ou seriamente admoestado) por um advérbio.” Hahaha, mais engraçado e ao mesmo tempo inteligente, impossível! E quanto a este: “A fama divulgou que The Secret Mirror era uma comédia freudiana; essa interpretação propícia (e falaz) determinou seu êxito. Infelizmente, Quain já completara os quarenta anos; estava aclimatado ao fracasso e não se resignava docemente a uma mudança de regime.” Hahaha!

Ficções prossegue com “Pierre Menard, autor do Quixote”, uma brincadeira inteligente com Don Quixote e a questão do tempo. “As ruínas circulares”, o texto mais esquisito, é um esquizofrenia delirante sobre os limites da realidade, que só fui entender na última linha. “A loteria em Babilônia” é uma interessantíssima discussão sobre o acaso. Em “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, a discussão sobre o tempo é levada ao extremo, bem como realidades alternativas. Este foi tão marcante para mim que, lendo-o após o almoço (quando o sono é inevitável), adormeci, mas estava tão ligado na leitura que sonhei com labirintos, que estão presentes aqui. Já “Funes, o memorioso” fala sobre memória e conhecimento através de um jovem de memória absurda, mas o autor explica no prólogo que “é uma vasta metáfora da insônia”. Quem sou eu para discutir...

Outros contos representam simples histórias inventadas, “ficções” sem discussões sobre temas estranhos, mas nem por isso deixam de ser geniais. “A forma da espada” conta um caso de traição durante a guerra civil irlandesa. É surpreendente, inteligente e mais fácil que os demais, tão bom que li duas vezes seguidas. O mesmo fiz em “Tema do traidor e do herói”, que remete a uma conspiração e manipulação da História, mas se este eu li duas vezes foi para entender, pois é mais complicado. “Três versões de Judas” é uma interessante reavaliação do papel do apóstolo como traidor, e “O sul” fala sobre sentimentos que sinceramente não consigo explicar, mas Borges escolheu este como seu melhor conto.

Apesar de já ter apresentado histórias geniais deste livro, o ponto mais alto tem nome: “A biblioteca de Babel”. Aqui o autor discute tão bem a questão do conhecimento e da realidade que, ao final da leitura, não acreditei que alguém pudesse ter escrito isso, e imediatamente voltei ao início e reli tudo, e só não li mais porque ainda queria conhecer os outros textos. A preocupação com a matemática e a filosofia é mais marcante que em qualquer outro texto, abarcando em poucas páginas diferentes correntes filosóficas, da idéia de realidade passível de conhecimento total ao exatamente oposto, a tentativa inútil do homem em alcançar o conhecimento absoluto. É tão fantástico que não tenho mais o que escrever sobre este conto, só lendo e se emocionando mesmo.

Alguns contos não tem a mesma vitalidade dos anteriores, como “A morte e a bússola”, “O milagre secreto”, “A seita da fênix” e “O fim”, este último com citações a Martín Fierro, que talvez por não conhecer muito bem este livro não aproveitei tão bem. Mas ainda que estes quatro últimos não tenham a mesma força que o resto do livro, não fez a menor diferença: a obra-prima já estava feita.

Editora: Companhia das Letras
Páginas: 176
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

p.s: Nas músicas de Raul Seixas, encontrei pelo menos duas referências a este livro, já que o autor de algumas letras Paulo Coelho é fã declarado de Borges: as músicas “Loteria em Babilônia” e “Judas”, mas procurando com mais calma deve ter mais. Também sou fã do Raulzito, e é sempre interessante conhecer estes detalhes.

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