sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Delta de Vênus + A Fugitiva - Anaïs Nin

De onde menos se espera, surgem as melhores coisas, já dizia meu avô em sua sabedoria pantaneira. Delta de Vênus, um dos grandes clássicos da literatura erótica, começou como um trabalho pago por um misterioso homem rico com fetiche por histórias de sexo. "O colecionador", como era conhecido, pagava um dólar por página para escritores que vivam em Paris na década de 1940, exigindo apenas que os trabalhos fossem meras descrições de atos sexuais, sem abordar aspectos psicológicos ou análises de sentimentos. "Menos poesia", dizia o misterioso contratante. Os trabalhos eram para seu consumo pessoal, e mesmo que um dia fossem publicados, com essa premissa tinham tudo para serem esquecidos pela história da literatura, como serão em breve os 50 tons de besteirol que estão na moda atualmente. Só que as tais historietas eram escritas por gente como Henry Miller e Anaïs Nin.

Publicado postumamente em 1977, Delta de Vênus é a compilação dos trabalhos escritos por Anaïs nesse contexto. Precisando de dinheiro, ela fica sabendo do negócio através de Miller e topa trabalhar para o colecionador, mas seu orgulho de escritora a impede de ceder aos seus caprichos castradores. Anaïs então ignora a parte do "menos poesia" e cria grandes histórias eróticas que se tornariam modelos para o gênero posteriormente. São dezesseis contos, alguns relativamente concatenados, de variados tamanhos, que abordam todo tipo de temas e tabus como prostituição, infidelidade, incesto e as mais variadas taras, cutucando o moralismo e até o eticamente aceitável, como pedofilia e sexo com animais. A qualidade da escrita é exemplar, mas o interesse suscitado é variável: alguns contos são excelentes, prendendo a atenção do leitor até o fim; outros nem tanto, tornando-se às vezes um pouco repetitivos.

Em 1976, pouco antes de morrer, Anaïs Nin escreveu um pós-escrito onde analisa seus antigos textos olhando retrospectivamente, e chega à conclusão que sua escrita era muito influenciada ainda pelas obras eróticas que havia lido, até então exclusivamente masculinas, mas compreende que sua feminilidade não foi completamente suprimida. Dizia ela: "Em numerosas passagens usei intuitivamente uma linguagem de mulher, vendo a experiência sexual do ponto de vista da mulher. Finalmente decidi liberar a erótica para publicação, porque mostra os esforços iniciais de uma mulher em um mundo que fora de domínio dos homens." Sem dúvidas, Delta de Vênus é um exemplo de erotismo marcadamente feminino, e difere bastante, por exemplo, da visão colocada por Henry Miller em seus livros.

Delta de Vênus está disponível no Brasil em edição burocrática da série pocket da editora L&PM. Da mesma editora existe a edição brasileira da segunda coletânea de contos eróticos de Anaïs Nin, intitulada Pequenos Pássaros, de 1979. Antes de ler Delta de Vênus, me chegou às mãos um pequeno livro da mesma editora, de uma "coleção 64 páginas", denominado A Fugitiva, que nada mais é do que o conto que dá o nome da edição, presente em Pequenos Pássaros, mais dois contos já publicados em Delta de Vênus, ou seja um coletânea de duas outras coletâneas editada para que o conteúdo coubesse no formato da tal coleção, o que não me parece uma coisa muito correta a se fazer, mas analisando a postura de muitas editoras brasileiras, em nada me surpreende.

Editora: L&PM
Páginas: 301 e 64
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O Som da Revolução, Um História Cultural do Rock, 1965-1969 - Rodrigo Merheb

Houve um tempo que a juventude decidiu mudar o mundo, e não só como seu antecessores - as mudanças de hábitos dos "anos loucos" da década de 1920, dos beats e do rock'n'roll simplório da década de 1950. Em meados da década de 1960, a juventude queria mudanças pra valer: a guerra tinha que acabar imediatamente, os valores da classe média ocidental deviam ser demolidos, a liberdade individual deixaria de ser só uma alternativa. E essa garotada teve a dádiva de contar com o som perfeito ao seu redor para lutar por tudo que exigiam, o som do rock.

Em O Som da Revolução, Um História Cultural do Rock, 1965-1969, Rodrigo Merheb utiliza as dezenas de bandas maravilhosas que surgiram no período para analisar o ambiente de efervescência social que virou a cultura de cabeça para baixo no período, transformando-a na nova onda de contracultura, e certamente a mais famosa (a primeira foi a dos beats). Como o autor coloca na introdução, "Os anos 1960 forneceram matéria-prima para mais teses acadêmicas, livros, biografias e relatos do que provavelmente qualquer outro período do século XX, com exceção da Segunda Guerra Mundial". Apesar de eu não ter ideia com que base um cara pode dar uma afirmação dessas, valeu, dá pra entender que é para ilustrar o fascínio que essa época exerce sobre as pessoas ainda hoje - a capa da Rolling Stone do mês passado, advinha: Jim Morrison... Realmente, são muitas passagens marcantes e imagens que ficaram na mente das pessoas, como o Jimi Hendrix tacando fogo na guitarra.

E agarrado nesse interesse geral que também lhe é particular, Rodrigo Merheb resolveu escrever sobre essa passagem da longa jornada da humanidade, utilizando o rock como linha condutora. Ou será que é o contrário? É a impressão que o texto às vezes passa, que o autor, na verdade, queria mesmo era falar sobre o rock em si, e pegou a parte da história cultural para justificar ou abonar o trabalho - sem que isso tire seus méritos, claro. Não é difícil perceber a paixão do autor, que trabalha como oficial de chancelaria no austero Itamaraty, em cada frase dedicada às suas bandas prediletas. O resultado é uma enorme quantidade de páginas de trabalho em estilo jornalístico sobre os causos bizarros de Janis Joplin, Keith Moon e cia, intercalados por análises menos expressivas sobre a cultura daqueles anos.

O recorte temporal - segunda metade da década de 1960 - é limitado por dois eventos musicais: Newport, quando Bob Dylan surpreendeu a plateia folk com uma guitarra elétrica, e Altamont, no esfaqueamento de um jovem negro pelos fascistas dos Hell's Angels que decretou o fim da era paz e amor. E entre esses dois eventos chaves, 14 capítulos passam por esses cinco anos, abordando temas como bandas da Califórnia, da costa leste ou britânicas, a cultura das drogas alucinógenas, a reação da sociedade ao rock e, é claro, muitos detalhes sobre o festival dos festivais, Woodstock. Como epílogo, o autor disserta sobre o que aconteceu com o rock nos anos seguintes a Altamont, dando um gostinho de quero mais, de arrumar logo um livro que fale sobre a decadência anunciada por Ziggy Stardust e o fim do mundo profetizado pelo punk. Ao final ainda há uma discografia básica sobre todas as bandas tratadas no texto, bem como filmes e livros a respeito.

Durante a leitura do livro nos certificamos o porquê de tanto interesse das pessoas nessa época, e a gênese da má fama que o rock reserva para si até hoje. O Som da Revolução, apesar de pecar em não se concentrar muito no tema que se propõe a abordar (uma história cultural, até porque o autor não é um historiador e carece de método), é uma bela leitura para quem ama o rock, mas talvez não sirva muito bem para quem desconhece o básico do período, pois como já escrevi, o texto é basicamente sobre bandas.

Hoje, a juventude do nosso país e do resto do mundo voltou a buscar a mudança - dos protestos contra o aumento de passagem à resistência da praça Tahir -, mas infelizmente não há mais uma trilha sonora adequada para isso. O jazz, que embalou os rebeldes da Geração Perdida à Geração Beat, se tornou música de fundo para velhos decadentes em restaurantes caros no exterior pondo em prática seus conhecimentos adquiridos em cursinhos de enologia. O reggae, o ritmo que gritou para o mundo as injustiças que os países pobres passavam, nas letras de gente como Bob Marley e Burning Spear, deixou pra trás sua fase roots e hoje não passa de música pop de baixíssima qualidade, o lixo cultural chamado reggaeton (que felizmente é inexpressivo no Brasil). A rebeldia inerente do rock morreu em Altamont, ressuscitou anos depois em sua forma mais digna de combate, o punk, morreu novamente nos sombrios anos 80, teve sua terceira encarnação no início dos anos 90 com o grunge, mas logo se foi novamente. Desde então os rebeldes, reduzidos a fileiras dignas de guerra de guerrilha, diferente dos exércitos que lotaram os campos dos grandes festivais internacionais, as ruas das cidades brasileiras no início da oposição contra a ditadura militar ou os guetos sujos da Inglaterra tatcheriana, lutam num silêncio simbólico, sem um movimento musical que os represente dignamente. Entretanto, dada a capacidade do rock de voltar dos mortos quando menos se espera, quem sabe ele não nos surpreende em breve? As multidões que estão voltando a reivindicar seus direitos pelo mundo afora merecem.

Editora: Civilização Brasileira
Páginas: 531
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *