sábado, 29 de agosto de 2009

Abusado - Caco Barcellos


No início desta semana, o Bope matou o bandido conhecido como "Joaozinho", braço direito de Fernandinho Beira-Mar, o maior traficante de drogas em atividade no Brasil, mesmo atrás das grades. Na segunda-feira, uma multidão acompanhou o enterro de Joaozinho, que era tido como herói por causa de seu assistencialismo nas favelas que comandava. Comerciantes do centro da cidade de Duque de Caxias, vizinha do Rio de Janeiro, fecharam as portas com medo de arrastões. Segundo alguns colegas que moram lá, motoqueiros armados e carros de som soltavam ameaças a quem quer que ouvisse. As autoridades negam o fato, afirmando tratar-se de boatos.

A demonstração de vitalidade da figura do bandido-herói me fez lembrar uma leitura de alguns anos atrás que aborda o tema, o livro "Abusado: o dono do morro Dona Marta", de Caco Barcellos. Nessa polêmica obra, o jornalista acompanhou parte da vida de Marcinho VP, chefe do tráfico na favela carioca de Botafogo, "abusado" (bandido que troca tiros com a polícia) e herói da comunidade. Apesar de ser uma reportagem, o livro foi feito em forma de romance, sendo "JulianoVP" (pseudônimo, como para todas as outras pessoas relacionadas a ele) o protagonista que atua numa história cheia de passagens chocantes e curiosas (como a filmagem do clip "They don´t care about us", do Michael Jackson) intercalada com sub-tramas de personagens da favela, como a do homem educado que subia o morro para cheirar cocaína ou da mulher que cansa de ser "otária" e vai viver a vida do jeito que quer.

Caco Barcellos vivenciou muitos momentos com o traficante, se arriscando quando ele era foragido na Argentina ou subindo o morro para gravar entrevistas. Talvez essa proximidade com Marcinho VP tenha interferido na imparcialidade jornalística do autor, que apresentou o marginal com seu lado humano, sua infância, sua religiosidade, seu carinho por Jovelina Pérola Negra, seu gosto por pequenas coisas como feijão, dentre outras características que muitas vezes ofuscavam o lado perverso de alguém que lucra com o vício alheio e ameaça a vida de outras pessoas - apesar de Caco Barcellos em momento algum ter demonstrado apoio ou sequer simpatia por suas ações criminosas.

A exposição pessoal de Caco Barcellos no processo de produção deste livro foi bem maior do que se tivesse sido qualquer outro jornalista, já que ele não era nada desconhecido pela polícia, pois após escrever "Rota 66", livro que trata de grupos de extermínio formados por policiais, teve que viver um bom tempo longe do Brasil por causa de ameaças de morte. Apesar de algumas falhas, "Abusado" é resultado de um trabalho bastante competente de investigação e interpretação, atrelado a uma escrita envolvente.

Editora: Record
Páginas: 588
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

Livro Digital

Nota: algum tempo depois do lançamento do livro, Marcinho VP foi encontrado morto dentro de uma lixeira no presídio onde cumpria pena.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A Assustadora História do Holocausto - Michael Robert Marrus

Na época de escola, assisti a uma palestra de Aleksander Henryk Laks, um judeu polonês que sobreviveu ao holocausto. Me lembro de coisas horríveis que ele disse para todas as crianças e adolescentes no auditório, como ver sua mãe entrando no trem que partia para Auschwitz ou seu pai morrendo a pauladas. Obviamente aquilo teve um impacto muito forte sobre todos nós, e provavelmente muitos, como eu, guardaram para o resto da vida. Desde então, o holocausto, assim como tudo que se refere à Segunda Guerra Mundial, se tornou de grande interesse para mim, e tive a oportunidade de aprofundar os conhecimentos nesse tema com a leitura de "A Assustadora História do Holocausto", de Michael R. Marrus.

O livro é voltado para o grande público, dando uma visão geral sobre o que foi o holocausto e como agiram os judeus, os nazistas, as populações locais, a igreja católica, a opinião pública mundial e a comunidade internacional. Não há pesquisa original do autor, mas sim um apanhado de toda a historiografia de até então (meados da década de 1980) com a interpretação de Michael Marrus. Com o início do livro debatendo sobre a natureza do holocausto - a discussão entre historiadores "funcionalistas" e "intencionalistas", cada capítulo posterior analisa e relativisa a culpa de cada um dos envolvidos - a opinião pública que não pressionou o suficiente, a pífia resistência judaica, as populações que apoiaram o extermínio dos judeus ou os governos dos países aliados que fizeram menos do que podiam no final da guerra. "A Assustadora História do Holocausto" é uma obra grandiosa e repleta de imagens chocantes - em minha opinião, as de jogos infantis e desenhos que estimulavam o ódio nas crianças alemãs são piores do que a de cadáveres.

Ainda que seja uma obra generalista e escrita para o público não especializado, e que o historiador canadense fuja do rigor acadêmico através da emissão de opiniões pessoais, o trabalho de Michael Marrus não descarta a citação de fontes e discussão historiográfica, e apresenta uma vasta recomendação de leituras para quem quiser se aprofundar no assunto. Não conheço a atual historiografia sobre o holocausto, mas digamos que este livro é, para a época em que foi escrito e para o público menos rigoroso, completo, a melhor opção para conhecer mais sobre este massacre que vitimou cerca de 6 milhões de judeus em pouco mais de cinco anos, além de ciganos, homossexuais, católicos confundidos com judeus e outras minorias. Vale lembrar que o título do livro (The Holocaust in History) foi modificado no Brasil para ter mais apelo através da série de "assustadoras histórias" (do terrorismo, da maldade, etc.).

Editora: Prestígio
Páginas: 431
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * * *

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O Condenado - Bernard Cornwell


Minha relação com os livros de Bernard Cornwell é, no mínimo, engraçada. Veja a primeira postagem deste blog. É sobre "As Crônicas de Artur", um livro que avaliei como excelente, puxei tanto o saco que parece que estou falando de quase uma obra-prima. Não que eu tenha exagerado, os três livros da série são o que há de melhor que já li neste estilo, mas... passe para o segundo livro do autor aqui no blog, "O Tigre de Sharpe". É um bom livro para se divertir, mas comparado com os anteriores, repare os primeiros sinais de decepção no meu discurso. Não dava para acreditar que um livro daquele não era exceção na carreira de alguém que tivesse escrito algo tão bom como "As Crônicas de Artur". A nova chance foi dada na série "As Crônicas Saxônicas", que gira em torno da história dos vikings, povo que sou fascinado. Lida desde o início, esperei dessa série a mesma vitalidade que havia lido anteriormente, mas aí apareceram os mesmos vícios de escrita de Cornwell, a repetição da velha fórmula que gera receita até hoje, e as coisas começaram a ficar claras para mim: Bernard Cornwell seria uma escritor de um livro só.

Uma última chance ainda foi dada no livro "O Condenado", mais porque já o havia comprado anteriormente do que por boa vontade. Neste livro, Bernard Cornwell apresenta uma história diferente das escritas anteriormente, com a violência dos campos de batalha dando lugar à investigação de um crime, como sempre na Inglaterra, mas agora no século XIX. Rider Sandman, um oficial do exército britânico que chega das guerras napoleônicas falido e não encontra nenhuma ocupação digna, se vê envolvido na investigação de um assassinato que pode condenar um inocente à morte. Cabe a ele descobrir quem é o verdadeiro assassino e fazer justiça - a mesma chamada para dezenas de filmes que já passaram no Super Cine, ambientada num período diferente.

O primeiro capítulo do livro descreve a execução de pessoas na forca com um detalhismo impressionante, e isso me empolgou para ler logo o restante do trabalho, mas a partir de então, o bom e velho estilo comercial de Cornwell toma o lugar da criatividade e da beleza descritiva de uma introdução onde o autor deu tudo de si e perdeu toda a energia criativa para continuar as outras centenas de páginas. Começa um texto maçante, uma história paralela de amor platônico e vários trechos monótonos. Dava até para me arrastar mais um pouco na leitura e saber como termina esse livro que não chega a ser tão ruim, mas preferi parar no meio e procurar alguma coisa melhor para ler.

Talvez se eu nunca tivesse lido nada de Bernard Cornwell eu não ficaria tão irritado, mas repito, o que cansa é a falta de recursos do autor para diferenciar seus livros uns dos outros. Talvez eu esteja sendo pouco piedoso também, pois Bernard Cornwell é só um ser humano, e não um semideus como a molecada o trata pelas páginas da internet. Não é todo mundo que nasceu com o dom de um Jorge Luis Borges ou um Ernest Hemingway, não podemos esperar tanto de alguém só porque faz sucesso, Paulo Coelho está aí para provar. Não chego a achar Cornwell um escritor medíocre, há que se levar em conta o que ele fez nas "Crônicas de Artur", mas, daqui pra frente, nada de novos livros dele, só a releitura da sua melhor obra mesmo.

Editora: Record
Páginas: 321
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *

Livro Digital

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Cassino Royale - Ian Fleming

Esqueça o musculoso Daniel Craig, a longa jogatina de pôquer, as organizações terroristas e as cenas de ação explosivas do "007 - Cassino Royale" que foi parar nos cinemas do mundo inteiro em 2006. O livro que iniciou a série sobre o agente secreto mais famoso do mundo serviu apenas de base para o filme, já que, devido às mudanças profundas ocorridas no mundo desde a década de 1950 até hoje, seria comercialmente inviável ser muito fiel ao original.

"007 - Cassino Royale", de 1953, é uma história passada num contexto de apogeu da guerra fria, quando o grande inimigo do ocidente era o comunismo. Se no filme recente o vilão Le Chiffre era um banqueiro de organizações terroristas, no original ele é o tesoureiro de uma organização secreta comunista que, após perder o dinheiro investido em prostituição, busca desesperadamente reavê-lo antes que seja morto pela Smersh - agência soviética encarregada de dar corretivos em traidores e incompetentes. Para Le Chiffre, a maneira mais rápida de conseguir o montante é através do bacará, jogo de cartas de apostas fortes no Cassino Royale - no filme o jogo é o pôquer, mais popular nos dias de hoje.

O livro de Ian Fleming, o primeiro da série, apresenta o despertar de James Bond, sua promoção a agente "00" (o sétimo do grupo de agentes que têm licença para matar) e sua inexperiência em lidar tanto com situações que pedem sutileza ao invés de força bruta quanto nas relações com as "bond girls". Com a primeira delas, Vesper, o espião se relaciona de forma diferente das demais, e o final é semelhante ao do filme (exceto por como a "vaca" morre, já que no filme acontece de maneira mais apoteótica), com o machão aprendendo a lição de como tem que encarar os relacionamentos na sua profissão a partir de então.

As diferenças entre filme e livro não se resumem ao contexto histórico ou às modificações para dar mais apelo comercial à história. Para quem busca a mesma ação encarada por Craig, Brosnan e Connery, o livro vai ser decepcionante. Aquela tradicional cena longa de tirar o fôlego presente na maioria dos filmes da série não existe no livro, e a pancadaria dá lugar a descrições, técnicas de espionagem e contraespionagem e estratégia. Particularmente em "Cassino Royale", as partidas de bacará se desenvolvem por páginas e mais páginas, perdendo até um pouco do sentido para quem, como eu, não conhece o jogo, já que as jogadas são bastante detalhadas.

Para quem não sabe, Ian Fleming trabalhou numa agência de inteligência britânica, e quando largou a profissão começou a escrever a série 007 baseando-se nas suas experiências. Cassino Royale, por exemplo, se baseou supostamente em temporadas pouco proveitosas com jogatinas em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. A personagem "M", que no livro é um homem, foi inspirada em um superior seu durante o trabalho para o serviço secreto da marinha. Já James Bond teria sido criado depois de Fleming ter conhecido Dusko Popov, um agente duplo com quem Fleming teve contato no cassino em Portugal, mas o nome do espião não tem nada a ver com isso: James Bond é o nome de um autor de um livro sobre ornitologia que Fleming lia na Jamaica, sua casa por longos anos.

"007 - Cassino Royale" foi uma bela surpresa por causa de todas essas diferenças com o filme, e uma boa iniciação nos livros da série. Nem melhor, nem pior do que o filme, agradou de outro modo.

Editora: Record (edição antiga da Civilização Brasileira)
Páginas: 204
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Bantos, Malês e Identidade Negra - Nei Lopes

"Bantos, Malês e Identidade Negra" teve sua primeira edição na década de 1980, quando poucas obras sobre povos africanos e sua influência no Brasil eram publicadas por aqui, e quase nada se falava a respeito do tema nas escolas e nas grades curriculares básicas das universidades. De lá pra cá, a pressão de educadores e entidades da sociedade civil promoveu a popularização do assunto, até que em 2003 foi estabelecida uma lei que obriga o ensino da história africana e dos negros no Brasil nas escolas, e hoje, tanto livros que tratam da história como a literatura africana são de fácil acesso - ainda que a "moda" tenha encontrado seu apogeu há cerca de 5 anos, e hoje tenha perdido um pouco do apelo para áreas mais faladas ultimamente, como China e Índia. Neste contexto, o livro de Nei Lopes me parece um tanto pioneiro, pois desconheço trabalhos de acesso fácil ao público não-especializado anteriores a ele no Brasil.

Prova da acessibilidade deste livro é sua organização. Dividido em duas partes, cada qual apresentando uma visão geral sobre cada um dos dois principais tipos de povos africanos que desembarcaram no Brasil como escravos, a escrita de Nei Lopes não é rebuscada e os temas são expostos desde os conceitos mais fundamentais - talvez porque não seja historiador e, consequentemente, não tenha seus vícios.

A primeira parte, que trata dos malês - nome genérico dado aos escravos de religião islâmica - é iniciada com aspectos bastante básicos da religião muçulmana, de sua expansão pela África, dos motivos da conversão de vastas áreas e do aspecto mais impressionante desta religião que muitas vezes nos é apresentada como purista e radical: o sincretismo que ocorreu entre o Islã e as religiões africanas tradicionais. Certa vez, o embaixador Alberto da Costa e Silva descreveu o constrangimento de uma autoridade de um país africano islamizado durante uma demonstração popular onde o Islã era celebrado ao som de batuques...

-->O Islã sofreu ainda mais modificações no Brasil. Os malês eram caracterizados como rebeldes, e esse islamismo criou a mítica do negro altivo, insolente, insubmisso e revoltoso. Ademais, eles eram intransigentes em seus princípios religiosos, o que gerava a antipatia de outros negros, principalmente os Bantos. Eram temidos pelas suas “feitiçarias” (a palavra mandinga tem origem no nome de um grupo étnico islamizado). Os malês representaram uma unidade acima das distinções étnicas, com uma escrita própria (todos eles eram alfabetizados em árabe), mas principalmente um importante fator de mobilização revolucionária - -->estes escravos foram o germe de rebeliões ocorridas na Bahia de 1807 a 1835 (ficando o movimento de 1835 conhecido como “revolta dos malês”). Tudo isso é relatado no livro com bastante transparência, sem termos específicos de historiadores ou palavras tiradas de dicionários do século XIX.

A segunda parte do livro aborda os bantos, originalmente a denominação de um tipo linguístico africano, mas significando na realidade brasileira praticamente -->todos os grupos étnicos negro-africanos do centro, do sul e do leste do continente que apresentam características físicas comuns e um modo de vida determinado por atividades afins. -->A religião dos bantos, na qual a noção de força toma o lugar da noção de ser e os ancestrais são venerados por causa de sua herança espiritual para a evolução da comunidade, originou o que hoje é conhecido pejorativamente e de forma simplista como "macumba", algo mais arraigado na cultura popular do que negros islamizados. Bem como na parte sobre os malês, aqui o autor aborda as contribuições bantas para a cultura e a história do Brasil, destacando religião, língua e a resistência dos quilombos.

"Bantos, Malês e Identidade Negra" é fundamental para estudiosos iniciantes sobre o assunto, e uma leitura muito agradável para o público em geral que deseja conhecer a história do país em que vive, por muito tempo esquecida em favor do status quo da sociedade pseudo-branca brasileira. Existem edições antigas encontradas em sebos e bibliotecas e uma mais nova, lançada pela editora Autêntica no ano passado.

Nei Lopes é formado em Direito e Ciências Sociais pela UFRJ. Além de escrever livros sobre a África e sua influência no Brasil, é sambista, poeta e escreve um blog sobre tudo isso.

Editora: Autêntica
Páginas: 224
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *