quinta-feira, 27 de novembro de 2014

O Castelo de Papel - Mary del Priore

Biografia entrecruzada de princesa Isabel e seu marido Gastão, o Conde d'Eu, O Castelo de Papel narra a vida de dois personagens pouco aclamados na História do Brasil, apesar de terem seus nomes ligados a fatos cruciais na nossa trajetória: ela, à Lei Áurea; ele, à Guerra do Paraguai. Escrito por Mary del Priore, historiadora que escreve fácil para o leitor leigo, o livro segue sua linha de popularização da História, sem deixar o ofício de historiadora de lado, tendência seguida também por outros historiadores a quem admiro, como Eric Hobsbawm e José Murilo de Carvalho. Contudo, esse trabalho de Mary del Priore apresenta alguns poréns. 

A começar pelo material que a autora tinha em mãos. A vida do casal nada teve de extraordinário, marcante, nem ao menos muito curioso. Ela mesma os classifica como "Ele, surdo. Ela, feia", numa síntese da mediocridade das personalidades abordadas. Gastão era um típico nobre europeu, com hábitos aristocráticos e vontade quase que exclusiva em participar de ações militares para honrar a tradição da família Orleans - o que só conseguiu por um breve período no Paraguai durante toda a sua vida. Isabel era uma beata criada para ser dona de casa, mãe e esposa, pelo menos assim se apresenta. Mulher mulherzinha, típica da época, nada revolucionária ou radical como uma Anita Garibaldi ou Maria Quitéria (ou Ana Neri, antes que alguma mente menos esclarecida me acuse de algum "ismo" por citar só mulheres em atividades "masculinas"). Nenhum dos dois era levado em muita consideração pelo imperador ou a opinião pública, ela por ser mulher, ele estrangeiro. Aliás, eles mesmos em grande parte dispensavam essa participação na vida pública, preferindo sempre o aconchego do lar em Petrópolis ou Laranjeiras, tomando como suplício as vezes em que tiveram que assumir o comando na ausência de D. Pedro II no Brasil. O que estimula a vontade de ler é quase que exclusivamente o contexto histórico em que estavam inseridos: o Segundo Reinado, sobretudo no período de decadência e queda. Tanto é que, ao período compreendido entre a morte de D.Pedro II e a morte do casal, cerca de trinta anos, são dedicadas apenas as últimas sete páginas do livro! Quase metade da vida morna da princesa em apenas 2% do livro, para se ter uma ideia. A contrapartida para isso é a boa contextualização que Mary del Priore faz do papel do casal na vida pública no período, mas ainda assim, parte considerável da narrativa é composta por transcrições de documentos, tirando sua dinâmica e originalidade.

Essa questão exposta acima nos coloca outra: por que alguém dedicaria um livro a personagens tão monótonos quando poderia escolher qualquer outro mais vivo, colorido? Tudo bem, a importância histórica deles e a contextualização seriam justificativas plausíveis mas, analisando a obra de Mary del Priore, nota-se uma, digamos, interlocução do presente trabalho com outros. O site Botequim Cultural publicou um artigo no qual expõe a tese que questiona a vasta produção da escritora (praticamente um livro por ano), relacionando-a em alguns momentos com uma superficialidade de pesquisa. Em O Castelo de Papel, há citações nas quais se percebe que muito foi retirado de trabalhos anteriores, e até material usado para o trabalho posterior lançado no ano seguinte (Do Outro Lado, a história do sobrenatural e do espiritismo). Cheira a jabá, mas até aí tudo bem. O problema é: quando se vê que, no mesmo período, a autora já escreveu livros de personagens próximos aos abordados aqui, como a Condessa de Barral e Dom Pedro Augusto (o elogiado O Príncipe Maldito), fica claro que o Conde d´Eu e a princesa Isabel não foram foco de uma pesquisa própria com objetivo de se produzir um trabalho sobre eles, mas sim um material paralelo de outras pesquisas, aproveitado para o lançamento de mais um livro! 

Tudo isso dá uma má impressão de oportunismo comercial, o que já cria antipatia, mas o resultado prático mais desagradável, como assinalado pelo artigo citado acima, é uma certa superficialidade da pesquisa. Nada de novo ou original nas interpretações, e questões controversas que teriam uma ótima oportunidade para serem esclarecidas não são abordadas. Nesse ponto, o que mais me incomodou, pela expectativa que eu havia criado ao comprar o livro, foi a falta de discussão sobre a polêmica participação do Conde d´Eu na Guerra do Paraguai. Muito se é dito sobre sua crueldade nos campos de batalha ou sua incompetência à sombra de Caxias, assuntos que alguns concordam totalmente ou com parcimônia, outros atribuem ao clima político de determinados períodos (a ideologia republicana, tentando depreciar a imagem de tudo ligado ao período monárquico, ou as décadas de 1960 e 70, representadas pelo livro O Genocídio Americano, do jornalista Júlio Chiavenato, uma época em que a luta contra o imperialismo e a ditadura militar eram o mote, e acusar o Brasil e o exército de serem representantes dos interesses da Inglaterra significava colocá-los do lado malvado da guerra, incluindo o conde). Quanto à princesa Isabel, essa visão de uma mulher fraca e sem maiores ambições do que ser a filha-esposa-mãe ideal - justamente a propagandeada pelos opositores do regime na época, e por isso, suspeitíssima - me parece contraditória quando exposta sua rivalidade com Dom Pedro Augusto, filho de sua irmã mais nova que se supunha poder iniciar o terceiro reinado no lugar da tia. Pode ser que Isabel não fosse tão bobinha como se dizia e se diz, ou que fosse mesmo, e que essa rixa fosse fruto de ciúme. O fato é que não há essa discussão, e a Isabel mulherzinha é decretada sem contestação. Esses são alguns dos assuntos que não são tocados em O Castelo de Papel. Pelo contrário, às vezes parece até que a autora tomou uma certa simpatia pelo pobre casal, "o surdo e a feia" novamente, deixando de lado uma visão mais crítica, imparcial e profunda que poderia ter sido feita.

Essa questão do Conde d´Eu na Guerra do Paraguai foi um dos principais motivos do meu interesse por essa leitura, posto que minha monografia de graduação foi sobre esse período e conservo até hoje esse particular interesse dentro da História. Há anos guardo essa controvérsia, e não foi dessa vez que a tirei de mim. Fiquei na vontade, insatisfeito... De qualquer forma, comprei o livro também por motivos profissionais - minha experiência como professor já me mostrou que, se você quer conquistar o aluno nas aulas de História, traga-lhe pormenores, detalhes, curiosidades, enfim, fofocas (contanto que elas sejam registradas pela historiografia, claro!). Biografias são sempre bom material para esse tipo de atividade, e apesar de todas as deficiências dessa, considero uma leitura mediana. Pelos temas curiosos abordados por Mary del Priore em outros livros e opiniões positivas da crítica especializada a trabalhos anteriores (além de respeito no mundo acadêmico), pretendo dar outra chance à autora futuramente, acredito que haja pontos mais altos em sua carreira. 

Editora: Rocco
Páginas: 317
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Café-da-Manhã dos Campeões - Kurt Vonnegut

Dando continuidade ao meu projeto de ler todos os livros de Kurt Vonnegut, esse que se tornou um de meus heróis da literatura, e provavelmente o autor que mais atrai meu interesse nos últimos anos, tomei para ler um de seus livros mais famosos: Café-da-Manhã dos Campeões, esse título que talvez seja o mais fantástico de todos os tempos - eu pelo menos não canso de repeti-lo como lema depois de noites memoráveis... Bem, apesar desse título profundamente inspirado e inspirador - tirado de um cereal matinal amplamente vendido nos Estados Unidos na época do livro - eu já estava ciente desde o início que essa não seria uma leitura excepcional, já que o próprio autor a classificou como "c", mas ainda assim, para mim, como fã de Vonnegut, ela era vista como essencial, pois apresenta personagens e passagens fundamentais na construção do universo vonnegutiano, principalmente a participação de Kilgore Trout, o escritor de ficção científica que serve de alter ego do autor, como um dos protagonistas da história.

A história se passa em Midland City, a representação ficcional de uma típica cidade do meio-oeste americano (que futuramente vem a ser destruída por uma bomba de nêutrons em Deadeye Dick), e gira em torno de dois personagens: Kilgore Trout, que viaja para lá para receber um prêmio por influência de um milionário que o tira da obscuridade (Eliot Rosewater, outro personagem recorrente em seus livros), e Dwane Hoover, um empresário local que, sabemos logo no início, vai surtar depois de ler uma história de Trout. Como em outros de seus livros, Vonnegut se baseia largamente em suas experiências pessoais e passagens marcantes de sua vida para tecer o enredo com minúcias e bizarrices tão características suas. Nesse caso Vonnegut se baseou especialmente no fantasma de sua mãe suicida, da mesma forma que o horror da Segunda Guerra Mundial foi para Matadouro 5

A narrativa é, em parte, semelhante a de outros livros seus, com a ironia e o deboche como fios condutores de toda a história, apoios para suas críticas contundentes à sua realidade de racismo, preconceito, desigualdade, hipocrisia, mas aqui Vonnegut experimenta ao utilizar desenhos seus espalhados por todo o livro - desenhos simplistas, porém espirituosos, que traduzem bem o humor característico do autor. Também seguindo a linha de seus outros livros, cada detalhe da história consegue agir por si só para estimular a imaginação do leitor numa composição compartilhada da história, uma das coisas que mais me encanta em seus livros.

Tudo o que Vonnegut tem de melhor está nesse livro, os personagens, a ironia, os detalhes encantadores, e nada disso se torna repetitivo quando comparado com seus outros livros. Entretanto, para mim (e acredito que também para o autor quando o classificou como um livro médio) parece que  o que ele não conseguiu dessa vez foi aplicar um ritmo empolgante à narrativa, e sua ironia, apesar de ter o mérito de uma tentativa original conjugada com os desenhos, perde um pouco o tom, talvez exagerando demais aqui. Independente de seus defeitos e deficiências, Café-da-Manhã dos Campeões foi essencial para mim como fã de Kurt Vonnegut e seu universo, e acredito que até para quem não conheça o autor e sua obra possa ser uma leitura agradável, mesmo longe de ser excepcional.

Editora: L&PM
Páginas: 310
Distribuição: normal
Avaliação: * * *

p.s: Em 1999 foi filmada uma versão do livro com Bruce Willis no papel de Dwane Hoover. Vou procurar, por curiosidade, mesmo sabendo que foi considerado pelo próprio Vonnegut como "sofrível"...