sábado, 28 de novembro de 2009

Zap Comix - vários autores


No final da década de 1960, em meio à guerra do Vietnã, ao conflito capitalismo x comunismo e ao sistema conservador que reprimia qualquer expressão de liberdade, jovens do mundo todo erguiam suas barricadas, físicas ou simbólicas, jogando pedras em soldados dos regimes ditatoriais no Brasil e no leste europeu, ou fazendo sexo e usando drogas sem parar. Tudo foi afetado: os hábitos, a música, a moda, e também os quadrinhos, que até então eram ingênuos e infantis.

A caretice dos quadrinhos tinha uma base forte: na década de 1950, um tal Fredric Wertham escreveu um livro chamado "A sedução dos inocentes", no qual afirmava "cientificamente" a periculosidade das histórias em quadrinhos nas mentes das criancinhas - segundo essa teoria, os garotos sofriam alto risco em pendurarem um lençol no pescoço e se jogarem das janelas dos prédios achando que iam voar como o Super-Homem... Para salvar sua pele, as próprias editoras entraram num esquema de autocensura através do "Comics Code Authority", um selo obrigatório em todos os gibis, indicando que os mesmo não apresentavam "riscos" para seus pequenos leitores - um longo index indicava o que era permitido e o que não era, como por exemplo, o bem ser derrotado pelo mal... Furar este bloqueio não era fácil, e poucos conseguiram, como em 1952 a revista Mad (que teve que mudar de formato para não ser classificada como gibi e foi investigada pelo FBI sob suspeita de incitar a delinquência juvenil). Contudo, a venerada Mad foi vendida em 1961 por questões fiscais, e então entrou no esquema das grandes editoras, perdendo seu encanto e sua importância. A caretice voltava aos quadrinhos, mas no ambiente de mudanças da década de 1960, surge a Zap Comix, no emblemático ano de 1968.

A Zap Comix é uma lenda entre os fãs de quadrinhos, por ter quebrado a barreira do Comics Code Authority e aberto as portas para os quadrinhos adultos e underground. Seu nascimento já é uma história e tanto: Robert Crumb, seu criador, vendia pessoalmente as revistas nas ruas de São Francisco. Sua namorada, grávida, decidiu ajudá-lo, e o casal perambulava pela capital hippie carregando as revistas dentro de um carrinho de bebê. Com o sucesso do primeiro volume, a publicação passou a contar com mais seis autores: S. Clay Wilson, Robert Willians, Spain Rodriguez, Victor Moscoso, Rick Griffin e Gilbert Shelton, cada um com sua doidice (surfe, drogas, carros, comunismo...), mas todos extremamente talentosos. Após a publicação da edição no. 4, os autores tiveram que enfrentar processo judicial por causa do conteúdo imoral da revista, o que foi, ao lado do julgamento dos oito ativistas de Chicago, um recado de que a repressão armava seu contra-ataque nos Estados Unidos, e a era hippie já era. Apesar disso, a Zap Comix teve 14 números, até 1996, quando Crumb desistiu de participar. As revistas eram lançadas mais ou menos a cada 3 anos. Em 2005 foi lançado o número 15, mas desconheço se Crumb participou.

O conteúdo das revistas era de cunho altamente contestador, apresentando tudo o que era proibido, e ao mesmo tempo mostrando o clima da época. Algumas histórias tinham apenas uma página, outras um pouco mais, mas todas eram recheadas com muito humor. Algumas narrativas apresentam uma organização básica e estrutura normal, outras são puro psicodelismo, e ainda tinham páginas que satirizavam as propagandas dos gibis da época, e outras que eram simplesmente painéis surreais. Zoação com os quadrinhos caretas também não faltam, como o Javali-Maravilha. Uma das histórias mais engraçadas é a de um barco de piratas gays, que expõem seus desejos sexuais com seus companheiros explicitamente (coisas como "adoro que todos os marujos gozem na minha boca!"), e são atacados por um barco de piratas lésbicas. Outra também muito legal é uma passagem da vida real - uma discussão entre três membros da Zap e Crumb, quando este decidiu largar a revista - contada de três maneiras diferentes, cada uma mais engraçada que as outras.

O volume publicado pela editora Conrad é uma compilação de 1968 até 1996, e apesar do belo trabalho dos editores brasileiros, da ótima introdução de Rogério de Campos contextualizando a obra e um acabamento de primeira, justamente aí se localiza um ponto fraco: me pareceu que as histórias compiladas perdem o vigor e muito de seu sentido fora da estrutura independente da época, mas essa é a única maneira de conhecermos esse importante trabalho, pois seria comercialmente inviável a reedição dos originais como foram publicados. O único ponto negativo da edição brasileira foi a falta de créditos dos artistas e datas em algumas histórias, mas pelas referências a acontecimentos contemporâneos a elas, dá para se ter uma noção aproximada de sua data na maioria das vezes. Por causa desses pequenos problemas, minha avaliação da edição brasileira de Zap Comix não vai atingir a nota máxima, mas as histórias em si são excelentes e essenciais para quem curte quadrinhos.

Editora: Conrad
Páginas: 187
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A Formação das Almas - José Murilo de Carvalho

Durante o período da ditadura militar no Brasil, uma quantidade considerável de recursos do país foi utilizada em realizações que muito pouco contribuíram para o avanço na direção de um povo apto para sua autodeterminação, sendo uma delas a ação deliberada no sentido de formar cidadãos sem o menor pensamento crítico em relação ao seu país. Apesar de ter nascido nos últimos anos deste período infame e, portanto, ter passado os primeiros anos da escola já no governo do bigodudo maranhense, lembro bem de ter aprendido que o verde da bandeira representa nossas florestas, o amarelo nossas riquezas e que o sentido de "ordem e progresso" era simplesmente como está no dicionário - resultado dos 20 anos anteriores, tempo em que minha professora aprendeu isso na escola dela.

Com a ditadura chegando ao fim, uma onda de desejos de libertação tomou conta do Brasil, não só com as letras sacanas da Blitz e do Ultraje a Rigor, mas também nas obras dos historiadores da época, como "A formação das Almas", de José Murilo de Carvalho. Este interessante livro aborda o período inicial da república com um pouco menos do glamour contido nos livros didáticos da época da minha mãe, mostrando o real sentido de fatos relacionados ao ato da proclamação.

A questão central abordada no livro é: que país se quis criar com a mudança de regime? E afinal, que país foi criado? Primeiramente, há que se saber quem queria criar este país, e devemos ser apresentados aos personagens que lideraram este processo. O problema é saber quem foram os verdadeiros líderes que promoveram a proclamação da república, já que cada um deles (Deodoro, Constant, Floriano e Bocaiúva) teve seu nome escrito na história de acordo com os interesses da época. Sem que se chegasse a um consenso sobre quem seria o herói da pátria, a grande responsabilidade recaiu sobre Tiradentes, que até então nada tinha a ver com a história em questão, mas sua escolha pegou tão bem que sua imagem foi utilizada (sem sua permissão, diga-se de passagem) tanto por governos militares como por grupos guerrilheiros.

Além da discussão sobre os heróis e formadores de nossa pátria, o livro de José Murilo também discute os símbolos do país, como a bandeira e o hino (de forma muito menos gloriosa do que a história das florestas e das riquezas nas cores do pavilhão), e os que tentaram ser mas não foram - como a tentativa de se identificar a república como uma mulher (que logo foi transformada em prostituta pelos opositores do novo regime). Tudo isso foi fruto de inteligente pesquisa do historiador da UFRJ, com seu característico sarcasmo sutil e muitas figuras de época.

"A Formação das Almas" é um excelente trabalho de nível acadêmico bastante acessível também para leitores de fora da academia, sem chateações eruditas ou linguagem para iniciados no ambiente dos pós-doutores. Essencial para qualquer cidadão que pretende conhecer as origens do país onde vive, compreender as entrelinhas nas palavras da bandeira nacional ou pelo menos saber quem são os senhores representados nas estátuas que dividem lugar com as cotias na Praça da República.

Editora: Companhia das Letras
Páginas: 168
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * * *