segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Bórgia - Alejandro Jodorowsky e Milo Manara

Durante a Renascença, a Igreja passava por um de seus momentos mais sórdidos: corrupção, luxúria, avareza e abusos de todos os tipos estavam na ordem do dia da maioria do clero, do mais insignificante padre de vilarejos europeus até a representação máxima da instituição, o papa. Qualquer um que tenha passado pelo ensino médio sem dormir nas aulas de história sobre Reforma Protestante já ouviu esse papo sobre os motivos da revolta de Lutero, mas dificilmente um material didático apresenta detalhes do grau de violência e depravação dos homens que se aproveitavam dos limites da racionalidade das pessoas naquela época. Crimes como estelionato, estupro, abuso de poder e assassinato político são apresentados sem clareza de como ocorriam e quem os cometia, diluindo a culpa simplesmente entre "alguns membros da Igreja".

O fato é que quem cometia tais crimes eram pessoas com nomes, famílias, histórias, enfim, pessoas passíveis de serem estudadas e biografadas, e nenhuma dessas pessoas representou o ponto mais baixo deste quadro vil como Rodrigo Bórgia, posteriormente papa Alexandre VI (de 1492 a 1503). Personagem impressionante por utilizar as estratégias mais cruéis para chegar ao poder, Bórgia e sua família foram parar nas mãos de dois artistas que, além de tecnicamente destacados, apresentam características de trabalho perfeitas para retratar uma biografia em quadrinhos cheia de violência, perversões sexuais e situações bizarras: Alejandro Jodorowsky (escritor e cineasta ícone da contracultura) e Milo Manara (talvez o maior nome dos quadrinhos eróticos de todos os tempos).

Bórgia é uma série em quatro volumes iniciada em 2004 ainda não concluída pelos autores, na qual é contada a história do papado de Alexandre VI e sua família, que inclui filhos e amantes. A demora do lançamento de novos volumes da série não se justifica pelo tamanho do material (cada volume não tem mais de 60 páginas), mas talvez pelo apreço dado pelos autores à qualidade do trabalho. Certamente, Bórgia é uma das histórias em quadrinhos mais magníficas dos últimos tempos, do modo como a história é contada à beleza artística de cada quadro.

O título do primeiro volume, Sangue para o Papa, já prepara o leitor para o teor da história, que começa com a iminente morte do papa Inocêncio VIII, que não tem nenhum escrúpulo em sacrificar quem quer que seja para ter alguns momentos a mais de vida. Rodrigo Bórgia, percebendo sua chance, inicia as maquinações para herdar o posto do moribundo Inocêncio, o que inclui subornos, assassinatos, chantagens, sexo e até mutilações de 150 pênis de uma só vez! O segundo voulme, O Poder e o Incesto, mostra Bórgia já como Alexandre VI lutando para manter-se no poder e colocar sua família no mesmo caminho, e o terceiro, As Chamas da Fogueira, lançado no ano passado, continua a saga da família num momento em que o papa é seriamente ameaçado por forças externas, terminando em aberto para que o arco seja concluído no volume seguinte, que sebe-se-lá quando será lançado.

O roteiro de Jodorowsky dá conta do ritmo necessário para uma obra com a quantidade de páginas que esta tem, apesar de exagerado e certamente não realístico - afinal, quem já viu algum filme de Jodorowsky sabe que não pode esperar algo diferente dele. A vida de Bórgia e seus comparsas não é tratada aqui como uma biografia afinada com a história, mas um trabalho livre para explorar aspectos da maldade e sede de poder do ser humano, o que funciona muito bem.

A arte de Manara está impecável. Apesar de ter minhas reservas quanto à qualidade dos desenhos deste artista em outros trabalhos (principalmente quanto ao machismo de colocar o mesmo olhar de puta e boca de boqueteira em todas as suas mulheres!) e não considerá-lo um gênio como outros o fazem, tenho que admitir que nessa série Manara conseguiu me convencer. Diferente de besteiras como "O Clic" (a série que o deixou mundialmente famoso), aqui o artista dá mais atenção a cada quadro para que mostre com clareza as expressões e os sentimentos dos personagens, e quando a cena se afasta para mostrar um plano mais aberto, alguns quadros lembram pinturas de Brueghel, com os detalhes da vida cotidiana daquela época - só que, neste caso, de uma perspectiva mais pervertida.

Há que se enfatizar também que, se os exageros de Jodorowsky na postura dos personagens e nas situações escabrosas tornam a história dificilmente de acordo com o que realmente aconteceu, é notório que houve uma pesquisa séria para que figuras históricas e cenários fossem retratados com a maior fidelidade à realidade. Observando alguns quadros da época, percebe-se a semelhança com os desenhos de alguns personagens, e as vestimentas, ambientes e objetos são bastante fiéis. Ainda assim, alguns personagens foram estilizados e não copiados das pinturas da época, como é o caso de Lucrécia, filha do papa, que foi transformada numa mulher arrasadora, diferente da retratada nos quadros.

Bórgia é uma obra de arte contemporânea que vale a pena ser lida e tê-la em sua estante, até pelo tratamento digno da edição brasileira (capa dura e papel couchê) mas atenção para um detalhe editorial: a editora Conrad vem publicando alguns de seus livros com um selo "edição especial", que nada mais são do que edições mais baratas e com menor qualidade. Comprei recentemente o terceiro volume de Bórgia pela internet, e quando chegou tive a surpresa desagradável: a edição não veio com a bela capa dura dos outros dois volumes, desfigurando a minha coleção. Mais uma da Conrad, a editora que, desde o limiar do milênio, vem publicando excelentes obras que fazem com que se destaque no mercado editorial, mas em contrapartida, frequentemente apronta uma dessas com os leitores.

Editora: Conrad
Páginas: 50 a 60 em cada volume
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

Bórgia em pdf

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Derrotista - Joe Sacco


É guerra? Pode crer então que, apesar de todos os riscos, vai haver um monte de gente desarmada indo para lá a trabalho, para produzir relatos dos seus detalhes mais sórdidos. Antes uma grande novidade, a reportagem de guerra foi, através do tempo, produzindo muita coisa sensacional ("Corações e Mentes", filme sobre o Vietnã, e "Guerra dos Bálcãs", fantástico livro de John Reed sobre a I Guerra Mundial - que não sei porque ainda não está nesse blog), mas o tempo não perdoa, e o que era novidade no passado vira banalidade, sobretudo após a proliferação das coberturas televisivas ao vivo. Todo gênero precisa de reinvenções esporádicas, e quando a reportagem de guerra dava seus sinais de acomodação, surge uma figura chamada Joe Sacco com relatos sobre áreas barra-pesadas como a Palestina ou a Bósnia da década de 90... em quadrinhos.

Joe Sacco fez fama e ganhou muitos prêmios ao longo de sua carreira por suas obras de jornalismo em quadrinhos, mas no auge do sucesso, pouca gente conhecia seus trabalhos underground anteriores. Foi quando Derrotista foi lançado, um álbum que mostra o trabalho do artista quando jovem, com toda a sua inexperiência e falhas típicas de um novato, mas por outro lado, as origens de sua exemplar carreira e as influências que o levaram a abordar os temas que o fizeram famoso - guerra e viagens pelo mundo afora.

O trabalho de Joe Sacco nessa fase é claramente influenciado pelos ícones dos quadrinhos underground Robert Crumb e Harvey Pekar, em alguns desenhos e temas autobiográficos (Sacco também já foi desenhista da American Splendor). O primeiro capítulo é um exemplo - Gênio dos Quadrinhos é bem ao estilo "um dia na vida de alguém comum" de Pekar, e o excesso de sombreado vem dos desenhos de Crumb. No meu dia de folga segue a mesma linha de roteiro, mas com um desenho já diferente, e Na companhia do cabelo comprido mostra as experiências de Sacco ao lado de uma banda de rock em turnê pela Europa.

O que mais se parece com os álbuns posteriores de Joe Sacco são as histórias Quando as bombas acontecem para as pessoas más e Mais mulheres, Mais crianças, Mais rápido. A primeira não é uma história em quadrinhos, mas sim ilustrações acompanhadas de citações de personagens reais da II Guerra Mundial que mostram os absurdos e contradições na política de bombardeios de alvos civis. A segunda é bem no estilo do autor, um relato sobre a II Guerra Mundial em Malta, sua terra natal, de acordo com as lembranças de sua mãe - menos história oficial dos livros e mais aspirações, necessidades e sentimentos das pessoas comuns.

Derrotista apresenta também um lado pouco conhecido de Joe Sacco, o humor ficcional, com bons e maus momentos. Oito personagens é uma coleção de pequenas histórias de cerca de quatro páginas sobre nove (!) personagens absurdos, como Johnny Frase-Feita ou Mark Massa-de-Manobra, coisa bastante divertida que contrasta com uma outra coleção chamada Apócrifas, que não é lá essas coisas.

Apesar das séries sobre a Palestina e a Bósnia serem muito melhores do que Derrotista, este álbum é bom, divertido e merece ser lido, mas para quem não conhece o autor, Palestina é o mais indicado - escreverei sobre esta série em breve aqui no blog. Joe Sacco vem ao Brasil em julho, na Flip, que cada vez mais abre espaço para artistas de quadrinhos. Ano passado veio Robert Crumb, mas infelizmente não consegui ir. vamos ver se esse ano eu consigo superar duas dificuldades de sempre em relação a este evento anual: a) lembrar de acompanhar as notícias no site para conseguir comprar os ingresso, que se esgotam rapidamente; b) conseguir algum lugar para dormir com preço razoável em Paraty nessa época, dificuldade maior ainda!

Editora: Conrad
Páginas: 217
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *