sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Matadouro 5 - Kurt Vonnegut Jr.

Considerada a obra-prima de Kurt Vonnegut, Matadouro 5, ou a Cruzada das Crianças é um romance baseado nas experiências do autor na Segunda Guerra Mundial, mais especificamente no episódio do bombardeio da cidade de Dresden, tido como um dos maiores massacres de civis da História. A impressão que se tem é que, dada a profundidade dessa experiência em sua vida, este era o livro que Vonnegut tinha que escrever, e o fez tão bem que recebeu resenhas positivas dos mais variados meios literários na época de seu lançamento, além de indicações para os principais prêmios da ficção científica e fantasia, o Hugo e o Nebula, em 1970 (perdeu ambos para A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula le Guin) . No início do livro, sugere-se que um livro desse deveria ser escrito porque as pessoas se interessam muito por histórias fortes de participantes da Segunda Guerra Mundial, e que isso rende bastante dinheiro, mas é óbvio que tal argumento não passa de um artifício de Vonnegut para impor seu característico humor, debochando de si mesmo e de quem quer que pense dessa maneira.

A estrutura de Matadouro 5 é muito parecida com a de outro livro do mesmo autor que já resenhei aqui, Deadeye Dick, uma narração sem rigor cronológico, pela qual já se sabe mais ou menos diversos acontecimentos logo no início, e talvez por isso mesmo fica-se com uma grande curiosidade de como aquilo vai acontecer. Só que em Matadouro 5, essa estratégia é muito mais radical, já que logo no início o autor deixa bem claro seu teor:

"As pessoas não devem olhar para trás. Eu certamente não farei mais isso. Já terminei o meu livro de guerra. O próximo que eu escrever será divertido. Este aqui é um fracasso. E tinha de ser, já que foi escrito por uma estátua de sal. Começa assim:
Escute:
Billy Pilgrim soltou-se no tempo.
Termina assim:
Piu-piu-piu?"

Os acontecimentos durante a guerra são os únicos narrados de forma linear, mas mesmo assim são interrompidos a todo momento por outras passagens da vida do protagonista, aí então de forma bastante caótica.

As primeiras páginas do livro são narradas por um veterano de guerra, uma breve apresentação na qual o leitor é informado sobre o processo de criação do livro. O narrador é obviamente o próprio Vonnegut, mas não fica claro se estas primeiras páginas, nas quais ele fala sobre um antigo colega que o ajuda a relembrar detalhes e uma visita ao matadouro alemão que dá título ao livro, são realmente acontecimentos da vida real ou se já ali inicia a ficção, através de um tipo de alter-ego. De qualquer forma, esta breve introdução só tem a função de criar o clima para o resto do livro, a história de Billy Pilgrim, e ademais nunca foi a intenção do autor escrever uma biografia fiel aos eventos por ele experimentados em Dresden, tanto que a primeira linha do livro diz: "Tudo isso aconteceu, mais ou menos." - a frase foi incluída na lista de 100 melhores frases iniciais de romances da American Book Review, na posição 38.

Billy Pilgrim, como já se diz logo no início do livro - digo o livro dentro do livro -, está solto no tempo, e por isso não faz sentido citá-lo no passado: ele é um soldado americano na Segunda Guerra Mundial, é um oftalmologista, é casado com a filha de um homem rico, é uma criança lutando para não se afogar numa piscina, é um homem de meia-idade prestes a sofrer um acidente de avião, é tratado como um animal num zoológico em outra dimensão... O tempo é presente em qualquer momento, foi o que Billy Pilgrim aprendeu com os tralfamadorianos, o segredo é focar-se nos momentos bons. Justamente por compreender isso, os tralfamadorianos não temem a morte nem o sofrimento, pois sabem que ninguém morre, apenas está morto em determinado momento, e em outros está vivo - e Billy é um dos poucos humanos que compreendem isso também. Apesar de todas essas discussões sobre viagem no tempo e alienígenas, e do livro ter sido indicado para o Hugo e o Nebula, entendo como um erro de interpretação tratá-lo como ficção científica, por motivos que aqui não posso explicar, sob o risco de interferir no prazer da leitura de quem ainda não leu o livro.

O tema mais aparente de Matadouro 5 é a repulsa pela guerra e pela violência, algo habitual na carreira de Kurt Vonnegut, tanto que o autor considera o ponto mais importante do livro o momento do fuzilamento de um personagem secundário por conta de uma chaleira, após o bombardeio de Dresden. O subtítulo do livro, A Cruzada das Crianças, tem uma conotação profundamente contrária à guerra em seu contexto. No entanto, outros temas talvez tenham a mesma importância ou até mais. A questão do sofrimento, discutida na forma de destino x liberdade é para mim o ponto chave do livro. A viagem no tempo, não de forma convencional da ficção científica (com máquinas), mas sim estar solto no tempo, como Billy Pilgrim, é a chave para o escapismo do protagonista. Os tralfamadorianos estranham o fato de a Terra ser o único planeta conhecido por eles no qual seus habitantes acreditam que dependem de sua vontade para determinar os acontecimentos. Eles inclusive sabem como o universo deixa de existir, e mesmo que para um terráqueo eles possam evitar tal acontecimento, isso simplesmente não faz sentido para eles.

O estilo de narrativa de Kurt Vonnegut, impecável aqui, talvez seja o que me faz gostar cada vez mais desse autor. Frases curtas, sem nenhum tipo de firula, dizendo de maneira certeira o que importa para a história,  algo que só os grandes escritores conseguem desenvolver; algo que, dizem, Hemingway teve que aprender com Gertrude Stein para se tornar o grande escritor que foi. O humor, geralmente negro e ácido, também está presente em Matadouro 5, mas aqui Vonnegut utiliza três palavrinhas que entraram para a história da literatura: So it goes (traduzido na edição brasileira como "coisas da vida", o que não chega a ser tosco, mas eu não gostei). Essa pequena frase se repete 106 vezes ao longo do livro, aparecendo sempre após o relato de algo trágico. Sua interpretação é ambígua: pode remeter a este humor negro característico do autor, como pode também ser um mecanismo para a recusa ao sofrimento tratada ao longo do livro - transformar grandes perdas individuais em algo ínfimo para a história da humanidade (ou, no caso, do universo).

Os personagens de Vonnegut são também um diferencial em sua obra, tanto que diversos dos que aparecem em Matadouro 5 são utilizados em outros livros. Alguns, aqui meros coadjuvantes, são protagonistas em outro momento, como Howard W. Campbell Jr, o narrador de O Espião Americano (Mother Night), ou Kilgore Trout, o escritor de ficção científica considerado o alter-ego de Kurt Vonnegut. Me parece que os coadjuvantes valorizam ainda mais o trabalho do autor, vista sua incrível capacidade de criar características de personagens em poucas linhas, como eu já havia escrito na resenha de Deadeye Dick. Pela quantidade de personagens importantes no universo vonnegutiano, acredito que Matadouro 5 seja o livro ideal para começar a explorar a obra desse autor.

Matadouro 5 é um livro estupendo, simples em suas palavras, pequeno, com parágrafos e trechos curtos, porém complexo em seus detalhes e desdobramentos, como estou me habituando aos livros de Kurt Vonnegut, esse autor que a cada dia se coloca entre meus favoritos. Já encontrei quase todos os seus livros, em inglês, em pdf, e agora o difícil é parar de lê-los para dar chance a outros autores.

Editora: L&PM
Páginas: 226
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

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sábado, 17 de dezembro de 2011

Escritores em Ação - vários autores

Quem gosta de livros sabe que, após a leitura de alguns trabalhos de um autor querido (às vezes logo o primeiro já é suficiente), surge a necessidade de ultrapassar o limite da ficção criada naquelas páginas e conhecer os detalhes da realidade por trás daquilo, como histórias da vida do autor e o momento em que o livro foi escrito. Quando o vício vira obsessão, o que é comum também e até saudável entre os amantes das letras, a necessidade por informações cresce, e geralmente a mania não se limita a um autor. Para os que são fanáticos por um determinado autor, existem as biografias, não raramente maiores que os próprios trabalhos do autor - exceto para fãs de autores obscuros ou locais, sofredores em potencial. Mas há também publicações que abordam algum determinado estilo ou época literária, abarcando diversos autores.

Para os interessados em literatura do século XX como eu, ainda pode ser encontrado em sebos um livrinho publicado pela Paz e Terra na década de 80, chamado Escritores em Ação, que reúne entrevistas de 14 autores para uma revista francesa chamada Paris Review - a saber: François Mauriac, William Faulkner, Georges Simenon, Alberto Moravia, Trumam Capote, Françoise Sagan, Ezra Pound, T.S.Eliot, Henry Miller, Aldous Huxley, Ernest Hemimgway, Lawrence Durrel, Mary McCarthy e E.M.Foster. Essas entrevistas começaram a ser publicadas em 1953, no primeiro número da revista; alguns estavam ainda produzindo partes importantes de suas obras, outros já estavam no final de suas carreiras, como Huxley, que na época escrevia seu último livro.

Paris Review era uma revista de vanguarda, que rejeitava as convenções da época, e preferia publicar contos e poemas de novos autores do que críticas sobre clássicos da literatura. As entrevistas da Paris Review ficaram famosas por conta da qualidade de seu conteúdo - apesar da inexperiência no campo jornalístico, os entrevistadores realmente conheciam o trabalho de seus entrevistados, o que resultava em perguntas inteligentes e respostas variadas, dependendo do humor do escritor. Nessas entrevistas, mais do que conhecer detalhes sobre as ficções que tanto nos encantam, descobrimos o lado pessoal de nossos heróis literários, mesmo que as perguntas pessoais não tenham tanto espaço. A abordagem central das entrevistas é sempre o processo de criação dos livros, coisas como inspiração, horários de trabalho, origem dos nomes dos personagens, mas as respostas para esse tipo de questões revelam bastante sobre cada um dos escritores.

Apesar de alguns dos entrevistados não serem muito conhecidos aqui no Brasil, é curioso ler sobre todos eles e comparar seus métodos e suas personalidades, para chegar à conclusão que, definitivamente, não há método fixo para se escrever um livro. É certo que quatro fases da produção de um livro existem para todos: a experiência ou vivência do autor, a meditação sobre aquilo, o rascunho e a revisão. O que varia, e muito, é o tempo de cada uma dessas fases. Alguns autores ficam com determinada ideia durante anos em sua mente, e subitamente escrevem sobre aquilo um dia. Outros observam alguma cena e logo poem-se a escrever, mas podem demorar anos no desenvolvimento. Há também os que concluem rapidamente um texto, porém gastam muita energia em sua revisão, a ponto de o texto revisado não ter mais quase nenhuma relação com o original. 

Horários e locais de trabalho também variam bastante, bem como a produtividade de cada um. Georges Simenon, por exemplo, escrevia seus romances em poucos dias - e não por acaso produziu cerca de 500 livros em sua vida. Françoise Sagan era uma adolescente de 19 anos quando publicou seu primeiro romance; Henry Miller passou por muita coisa na vida até ter seu primeiro livro aceito por uma editora, quando já tinha mais de 40 anos. E quanto às personalidades do autores? Trumamn Capote só conseguia se concentrar para escrever deitado no sofá, fumando e bebendo café. Aldous Huxley foi um verdadeiro gentleman inglês com os jovens entrevistadores, enquanto Hemimgway não fazia nenhuma questão de esconder seu humor devastador com perguntas que julgava cretinas: "O fato de eu estar interrompendo um trabalho sério para responder a estas perguntas prova que sou tão estúpido que deveria ser seriamente castigado. Eu o serei. Não se preocupe." - respondeu o escritor mais machão da história ao ser perguntado se achava fácil "passar de um plano para outro, ou prossegue até terminar o que começa". 

Comprei esse livro há cerca de 10 anos, quando ainda não estava esgotado na editora, e na época só li os capítulos que me interessavam, sobre Miller, Huxley e Hemimgway, pegando o livro novamente para ler todas as entrevistas só depois desse tempo todo. É um livro fácil, pode ser lido aos poucos, e muito interessante para quem gosta dessa fase literária. Só não crie expectativas de descobrir como escrever um romance a partir dos métodos desses autores, definitivamente não vai dar certo.

Editora: Paz e Terra
Páginas: 339
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * *