quarta-feira, 13 de março de 2013

O Estrangeiro - Albert Camus

"Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: 'Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames'. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem."

A citação de um dos trechos logo do início do livro mostram o que vem pela frente nas páginas de O Estrangeiro, de Albert Camus. Meursalt é um pied-noir (pé negro, em referência aos calçados ocidentais), um franco-argelino que vive como um um homem comum, diria medíocre até, no norte da África colonizada pela França, aparentemente na década de 1930. Tem um emprego burocrático, sem muitas pretensões materiais na vida, busca pequenos prazeres como sair com uma mulher bonita ou fumar um cigarro, mantém relações cordiais e superficiais com pessoas da vizinhança. A diferença dele para os outros homens está em seu modo de sentir as coisas. Mesmo sem refletir sobre isso, Meursalt é uma espécie de niilista. Para ele, não há um sentido profundo em nada, as convenções sociais não lhe dizem nada, Meursalt apenas reage da forma mais natural, como um animal: uma reação imediata aos estímulos sensoriais. O que não faz de Meursalt uma pessoa má. Quando sua mãe morre, eu diria que ele age até racionalmente, como deveríamos nos sentir quando algum idoso morre: todos morrem em algum momento, sua mãe estava idosa, e havia chegado a hora dela. Com essa naturalidade, o protagonista narra esse momento que, para a maioria das pessoas, é difícil demais por causa das lembranças afetivas do ente querido.

O livro é todo narrado em primeira pessoa, e com uma narração seca, limitada ao necessário. A citação inicial nesse texto é um bom exemplo do que Camus queria - o personagem narra os fatos quase como uma pessoa escrevia um telegrama, tentando economizar cada palavra, enquanto Meursalt parece não ver motivos para gastar sentimentos que para ele não existem. Contudo, ao desenrolar o livro, o narrador deixa de ter seus pensamentos limitados exclusivamente pelas experiências sensoriais, e o texto começa a desenvolver uma linguagem mais emotiva, mesmo que seja de revolta, angústia ou incompreensão, mas ainda assim limitando-se ao necessário, sem rodeios, o que produz um livro sucinto, dividido em duas pequenas partes. Na primeira, Meursalt começa sua narrativa seca sobre a morte de sua mãe e seu cotidiano, mostrando-nos suas características psicológicas que definem o livro. Na segunda, o personagem é preso e julgado, com uma certa dose de incompreensão que remete a O Processo, de Franz Kafka. Mas as semelhanças param por aí, pois se no livro do autor tcheco o protagonista é julgado por sabe-se lá o que, aqui o julgamento se dá muito mais por questões morais e julgamentos sociais do que pelo crime cometido (e há um crime concreto, diferente do processo kafkiano). A sociedade julga Meursalt não pelo seu crime, mas por suas ideias e posições. Nada muito diferente do que ocorre hoje e sempre ocorreu nos tribunais - ontem mesmo, no julgamento do assassinato da advogada Mércia Nakashima, todos os jornais mostraram as tentativas do advogado de defesa em desabonar a vítima.

No original, o título de O Estrangeiro pode ter tanto o sentido da tradução para o português como pode significar também estranho. O jogo de sentidos do francês cabe perfeitamente para mim, pois quando leio L'étranger "eu me sinto um estrangeiro", como cantou Humberto Gessinger, mas também me lembro que sempre fui um estranho a este mundo, "um estranho numa terra estranha", como escreveu Robert Heinlein. Tendo sido lido pela primeira vez nos meus vinte e poucos anos, no momento em que eu formava toda a base da minha educação superior, não posso dizer que O Estrangeiro determinou quem eu sou hoje, mas certamente me deixou espantado em como eu me identificava com muito do que sentia (ou não sentia) Meursalt pelo mundo à sua volta, traduzindo um pouco das minhas angústias em ser um estrangeiro/estranho. É e nunca deixará de ser um de meus livros do coração, essas coisinhas tão importantes às quais recorremos ao longo da vida por diversos motivos.

O Estrangeiro está situado nada menos do que na primeira posição da lista dos 100 maiores livros do século XX elaborada pelo jornal Le Monde - tudo bem que é uma lista criada por franceses, recheada de autores franceses, e nunca teria um autor estrangeiro (trocadilho inevitável) acima de um francês nessa lista, mas ainda assim diz algo, não é?

Editora: Best Bolso / Record
Páginas: 112 / 126
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *