quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O Clube do Filme - David Gilmour

Relacionamentos entre pais e filhos são tratados na cultura universal desde seus primórdios. Encontramos o tema já na Odisseia e mesmo antes, na história de Ganesha ou em alguns livros da Bíblia. Já no nosso tempo, a questão é abordada da psicanálise à cultura pop - Freud, Star Wars, Psicose e músicas de The Doors, Legião Urbana ou Elis Regina. Em outras palavras, a questão é mais velha que trocadilho sobre o pavê em festa de família, e também sempre tem alguém disposto a repeti-la. 

David Gilmour, um crítico de cinema canadense que não tem nada a ver com o cantor e guitarrista do Pink Floyd, resolveu utilizar sua experiência pessoal com seu filho adolescente para escrever mais uma história sobre pais e filhos e seus conflitos de gerações, mas com uma premissa aparentemente diferente. Digo aparentemente porque, que eu saiba, ninguém nunca tinha utilizado especificamente seu método na tentativa de um novo tipo de relacionamento com seu filho, mas se olharmos num sentido mais amplo, a fórmula não é nova. Já voltamos a esse assunto. 

Jesse Gilmour era um jovem de 15 anos que não apresentava o menor interesse pelos estudos. O resultado eram reprovações em sequência, sem que houvesse a menor perspectiva de mudança. Sem saber mais o que fazer, David Gilmour teve uma ideia pouco conservadora: concordaria em deixar o rapaz abandonar a escola, contanto que ele aceitasse assistir a filmes ao lado de seu pai, e depois discutissem alguns temas levantados pelo crítico. Gilmour estava desempregado, e utilizou esse revés em seu favor, pois teve bastante tempo livre para se dedicar ao projeto que ele chamou de Clube do Filme.

David Gilmour então começa as atividades dividindo os filmes de acordo com temas, alguns deles especificamente sobre questões relativas ao cinema em si, outros de acordo com as situações e dilemas da vida do filho. Maravilhas como Ladrões de Bicicleta, Ran ou O Último Tango em Paris dividiam espaço com coisas do nível de Showgirls. O que importava era a discussão que eles podiam gerar, e não um currículo de curso de cinema. 

A experiência durou três anos. Realmente, parece que nenhum pai que se importe com seu filho alguma vez teve a coragem de tomar uma decisão tão radical assim, mas se pensarmos em relação a livros, a ideia não é tão original e remete a um outro grande sucesso da literatura: Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas. Um livro que achei muito chato, e ao ler O Clube do Filme notei essa clara identificação. Apesar da matéria ser diferente, ambos foram escritos por pais que utilizaram seu conhecimento em um tema em especial para instruir seus filhos ao mesmo tempo em que trabalhavam seu relacionamento com os garotos. E em ambos os casos, os resultados foram livros nos quais a graça está no tema de conhecimento dos pais e só. Infelizmente, assim como em Zen, O Clube do Filme dedica pouco à sua proposta de tratar, no seu caso, de cinema, e se concentra muito na história de pai e filho, o que para mim não tem graça nenhuma.

Quando David Gilmour descreve a exibição dos filmes e a discussão resultante disso, O Clube do Filme se torna uma leitura muito gostosa para quem curte cinema. Mas na maior parte do livro, o autor prefere expor o relacionamento de pai e filho, o conflito de gerações, e as questões de um adolescente problemático de modo supervalorizado - quem se importa com um pé na bunda que um moleque qualquer leva de sua namoradinha? Além disso, essa ideia inovadora do pai, ao meu ver, nunca poderia dar certo com os valores que ele passa para o filho: um cara desempregado que janta com frequência no restaurante mais caro da cidade e viaja para o exterior, se preocupa em seu filho usar drogas mas chega bêbado em casa. Essas e outras posturas babacas do pai, como toler o rapaz já maior de idade por ele mastigar de boca aberta me passaram uma imagem do autor sendo um burguesinho medíocre e aumentaram minha antipatia pelo livro. Seu texto simplório e cheio de diálogos fracos chegou a ser um alento para mim, pois agilizou a leitura, isso quando não pulei várias partes mais desinteressantes. Bem, pelo menos existem recomendações de mais de cem filmes fundamentais, a maioria tratados em apenas um parágrafo, e nesse reduzido espaço o autor surpreende sendo eficaz e conciso como um bom crítico de cinema, o que salva o livro de uma catástrofe total.

Editora: Intrínseca
Páginas: 239 
Disponibilidade: normal
Avaliação: * *

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Abutre - Gil Scott-Heron

Impossível imaginar fins dos anos 60 sem flores e cores, viagens psicodélicas, hippies na paz e amor, liberdade sexual e o início da Era de Aquário. Contudo, fazendo-se isso fechamos os olhos para todas as outras realidades existentes naquele momento em diferentes locais do mundo. A vida dos negros norte-americanos era uma delas, bem menos colorida que a dos jovens brancos que buscavam a paz para toda a humanidade em Haight-Ashbury. No Harlem, no Bronx ou no Brooklyn, os negros lutavam por algo bem menos importante para o resto da sociedade americana: sua própria sobrevivência. Afundados em desemprego, drogas e violência policial, os negros de lá são a prova de que nem todo mundo estava afim de sair na rua descalço com flores no cabelo quando se tinha antes que tirar a desvantagem de ter nascido com a cor errada, no local errado e no momento errado, mesmo cem anos depois da abolição da escravidão naquele país. Abutre, primeiro livro de Gil Scott-Heron (1970), apresenta a visão de jovens negros dos guetos novaiorquinos sobre essa época explosiva de intensa luta por direitos civis.

Essa visão é antes de tudo autêntica. O autor tinha apenas 19 anos quando lançou o livro, e vivia no mesmo local onde toda a trama se passa. Um jovem escritor, mas com uma impressionante maturidade para sacar bem diversas questões contemporâneas. 12 de julho de 1969. John Lee, um traficantes adolescente negro e gordo é encontrado morto. Quatro personagens que tiveram alguma relação com o cadáver relatam em primeira pessoa alguns acontecimentos do seu último ano de vida. As peças tendem a se encaixar progressivamente para que o crime seja solucionado.

Como um livro policial, Abutre é bom. O roteiro é bem feito, num ritmo seguro, sem furos. Mas como retrato daquela realidade, é melhor ainda. Os quatro personagens tem algo de valor a dizer sobre aquele momento. Quatro jovens, como Scott-Heron, que representam diferentes tendências daquela juventude, e talvez tenham um pouco do próprio autor. Spade, o traficante maioral da área admirado como bandido-herói. Junior Jones, o garoto que quer ser como Spade, mas não tem culhões para tanto. Afro, engajado na luta dos direitos civis e afirmação da negritude, acreditando no sucesso do coletivo antes do individual. E I.Q., um jovem dividido entre seu extraordinário talento intelectual e a vida mundana. Tratando especificamente da cultura e da vida dos negros norte-americanos, Gil Scott-Heron acaba antecipando um gênero que seria disseminado nos Estados Unidos nas décadas seguintes, chamado Blaxploitation (black + exploitation), filmes com temática específica sobre negros visando a audiência negra. O filme Shaft (1971) é um dos principais expoentes do gênero, mas se você procura algo mais peculiar, Blacula é a sugestão. 

Só pela criação de Abutre aos 19 anos, percebe-se que Gil Scott-Heron era um artista diferenciado, mas esse foi só o início de sua carreira. No mesmo ano, lançou seu primeiro disco, com poesias gravadas, e no ano seguinte um de música propriamente dita, porém sempre misturando poemas e letras fortes. A isso se deu o nome de Rhythm and Poetry (ritmo e poesia), que posteriormente ficou conhecido como RAP, ou seja, os fundamentos do Hip-Hop. O melhor exemplo disso é a ótima música The Revolution will not be Televised - um ritmo empolgante com uma letra combativa e rebelde, como tudo o que teve origem nesse tipo de música deveria ser, em vez das besteiras dos gangstas americanos ou dos nossos funks ostentação... 

Apesar de só ter lido esse livro agora, já curto Gil Scott-Heron como músico há alguns anos. O cara é muito bom em tudo o que se aventurou na vida. Seu intuito inicial era ser escritor, e apesar de ter obtido um ótimo resultado com Abutre, só escreveu mais um livro, The Nigger Factory (1972), sem tradução para o português. Recomendo o livro e uma lista de músicas para curtir junto da leitura. Infelizmente Abutre está esgotado, mas é encontrado facilmente em sebos. 

Editora: Conrad
Páginas: 229
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * *

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Neil Young - A Autobiografia

Dois são os fatores fundamentais para que uma biografia seja bem-sucedida: uma vida cheia de passagens interessantes, divertidas ou inseridas em um contexto importante, e a forma como ela é narrada. Quando essas duas coisas se conjugam, está pronto um excelente livro ou filme. Sozinhas elas também podem funcionar bem. O primeiro fator se explica por si só, e pode dar um bom resultado mesmo que a execução não seja lá essas coisas. O segundo já se provou viável sozinho também -  veja Harvey Pekar, um arquivista com uma vida medíocre em Cleveland que criou obras-primas dos quadrinhos alternativos reproduzindo papos-furados com os amigos e situações corriqueiras de um americano médio. Em sua autobiografia e primeiro livro publicado, Neil Young não conseguiu impor nenhum dos dois fatores, e se tratando de quatro décadas no mundo do rock, muito disso se deu voluntariamente, por escolha do próprio autor.

Não sou fã de Neil Young. Na verdade, conheço relativamente pouco de sua vasta discografia (contando todas as bandas que ele tocou mais seus discos solo, são pra lá de cinquenta álbuns), mas ultimamente tenho tido muito prazer em tocar no violão algumas das músicas do excelente disco Harvest, e achei pertinente conhecer um pouco do cara que criou essas canções. 

Praticamente tudo contido em sua autobiografia era novidade para mim. Apesar de já ter bastante familiaridade com o Harvest, muita coisa importante produzida por Neil era desconhecida para mim, e passei a conhecer paralelamente à leitura. Foi surpreendente para mim descobrir que o músico teve dois filhos com paralisia cerebral, por exemplo. Bem como seu amor por carros, ferromodelismo e sua obsessão com a melhora na qualidade do som nas mídias atuais. Ou sua relação com seu pai ou sua mulher à época do lançamento do livro. Ok, mas... onde fica a música no meio disso tudo? Relegada a um ou outro dos 68 capítulos. Um terrível erro para alguém que viveu disso por décadas, e poderia ter usado a situação para criar um livro com material bem mais atrativo, ou que pelo menos respondesse às expectativas de alguém que compra a autobiografia de um músico!

Portanto, Neil Young abriu mão de utilizar o que tinha de melhor, sua experiência no mundo da música, para escrever uma autobiografia sem graça, sem apelo e sem conteúdo atrativo. Poderia até ter dado num livro bacana se ele tivesse conseguido impor um ritmo original como Harvey Pekar, mas não deu certo. A estrutura do livro é caótica. Os capítulos são espalhados aleatoriamente. No início, até achei boa a ideia dessa construção heterodoxa, meio solta no tempo como Bill Pilgrim em Matadouro 5,  mas a partir do momento em que você percebe que ele prefere falar do dia em que seu carro deu defeito no meio da estrada com sua cachorrinha como passageira do que do processo de criação em On the Beach ou Zuma, a coisa toda perde o sentido. Acaba virando meio que um diário no qual ele escreve bastante sobre o presente, meio que um livro de memórias bastante pessoais de situações insignificantes para os outros. Há muita atividade atual, muitos projetos que visam salvar o planeta e as almas das pessoas nesses tempos modernos que Neil não consegue absorver bem - de carros elétricos ao Puretone (atualmente Pono), a mídia de altíssima qualidade criada por ele para derrotar o mal que o mp3 traz para a saúde auditiva das pessoas. Só que esses papos enchem o saco, e acho que ninguém quer saber quando compra a autobiografia do Neil Young.

Posso dizer que essa autobiografia me abriu as portas para a vida e a obra de Neil Young, porém mais como um catálogo do que com conteúdo em si - li páginas na internet e ouvi seus discos no youtube como fontes paralelas de informações, muito mais úteis do que no próprio livro. E assim conheci um pouco do criador das músicas que andam fazendo minha cabeça ultimamente... e o coração da pessoa amada...

Editora: Globo
Páginas: 408
Disponibilidade: normal
Avaliação: * *