quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Marvel Comics: A História Secreta - Sean Howe

Poderíamos categorizar como biografia um livro que conta a história de uma editora de quadrinhos, ou seja, uma empresa? Após ler Marvel Comics: a História Secreta, posso afirmar que sim, já que o mote principal abordado por seu autor, o jornalista Sean Howe, é justamente esse: mostrar a dualidade e os conflitos existentes entre o lado empresarial da Marvel, ditado por interesses de mercado, e sua contrapartida humana, que envolve tanto criatividade quanto paixões, desavenças, vingança, orgulho e todo tipo de outras situações que podem ocorrer no convívio de seus diversos membros.

Dificilmente alguém que viva no meio urbano hoje em dia pode não conhecer a Marvel Comics, pelo menos de nome. Seu slogan é praticamente onipresente em livrarias, lojas de brinquedo, brindes de lanchonetes e tudo mais, devido à popularidade que personagens como Homem-Aranha, Capitão América, Hulk, Thor, Homem-de-Ferro, entre outros, vêm alcançando nos últimos 15 anos através de produções milionárias para o cinema. É obvio que todos os personagens citados já fazem parte do imaginário popular há muito mais tempo, a diferença é que hoje sua exposição é muito maior - e sua rentabilidade, mais ainda.

Uma das coisas que se pode conhecer com a leitura desse livro é a trajetória que a editora percorreu até chegar a esse ponto. Começando em 1939 com o nome Timely Comics, a Marvel passou por diversas fases, tendências, acertos e erros, tanto artísticos como comerciais. Mas principalmente, durante essas quase oito décadas, a Marvel passou na mão dos mais variados tipos de pessoas, com suas escolhas, seus dilemas, seus amores e ódios. E é sobre essas pessoas, muito mais do que da história dos personagens famosos e lucrativos da editora, que Sean Howe resolveu escrever.

Quando se fala em Marvel Comics, sob qualquer aspecto, não se pode desvencilhar a imagem de Stan Lee, aquele velhinho simpático que aparece rapidamente em todos os filmes dos super-heróis da editora hoje em dia. Sobrinho de Martin Goodman, criador da Timely, Stan Lee, hoje com mais de 90 anos, esteve presente em praticamente todos os momentos da história da Marvel, direta ou indiretamente, como roteirista, editor ou simplesmente homem de negócios buscando outros nichos de mercado para a editora (sobretudo o cinema, quase uma obsessão sua), mas acima de tudo, sendo o responsável pela criação dos personagens que surgiram na década de 1960 que formaram a espinha dorsal do universo Marvel. Quer dizer, pelo menos na versão oficial, já que uma das grandes discussões que se arrasta até hoje em dia é o papel de Lee na criação desses personagens - os parceiros dele, como Steve Ditko e Jack Kirby, acusaram-no até a morte de ter um papel bastante reduzido nesse processo. Só que Dikto, Kirby e tantos outros permaneceram muito menos tempo na Marvel do que Stan Lee, e como se sabe, a história oficial é sempre a história contada pelos vencedores.

Essa questão de créditos de criação dos personagens e, principalmente, os direitos comerciais sobre eles, é outra discussão importante no livro de Sean Howe, já que sempre acompanhou os artistas e proprietários da Casa das Ideias. Em todas essas décadas de quadrinhos de super-heróis, tanto a Marvel como sua principal concorrente, a DC Comics (editora de outros ícones como Super-Homem e Batman), sempre conseguiram manter sua propriedade sobre os personagens criados para fazer parte do seu universo. A alegação das editoras é que os criadores são contratados no esquema "work-for-hire", algo do tipo freelance, e isso nunca foi revertido a favor dos artistas. A principal tentativa de superar essa situação veio na década de 1990, quando desenhistas de uma nova geração se tornaram superstars no mundo dos quadrinhos e decidiram que era a hora de se vingar do que eles e muitos outros antes encaravam como exploração de seu trabalho. Artistas como Jim Lee, Rob Liefeld e Todd MacFarlane abandonaram a Marvel e criaram uma nova editora, a Image Comics, que por algum momento representou uma ameaça real ao domínio Marvel/DC.

A criação da Image não foi o único momento de crise e risco de extinção da Marvel Comics. O livro apresenta diversos outros períodos de vacas magras, tanto criativa como financeiramente, em que a Marvel quase fechou as portas. Talvez esse seja um ponto fraco na dissertação de Howe, pois o autor negligencia a situação do mundo nos acontecimentos referentes à Marvel - por exemplo, acho que ninguém que escreva sobre uma empresa pode deixar de levar em conta a crise mundial iniciada em 1973 com a alta do petróleo ditada pela Opep. O autor poderia ter trabalhado mais profundamente essas questões, ou outras como a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos na década de 1960, que são apenas citadas, quando muito.

Porém, como já citado, a linha condutora do livro é mesmo a dicotomia emocional/humano x racional/comercial. Com o tempo, a Marvel foi crescendo, e ao mesmo tempo em que tinha que tomar decisões frias e comerciais que uma empresa precisa ter para sobreviver no capitalismo, seus fãs cresciam, e alguns deles acabaram por entrar na equipe da editora. Esses meninos que tiveram a companhia de seus heróis durante toda a vida não queriam colocá-los em situações constrangedoras por causa de interesses mercadológicos (tipo, qual era a lógica de o Homem-Aranha utilizar um "Aranha Móvel" para se locomover no congestionamento de Manhattan se ele podia simplesmente se balançar entre os arranha-céus?). O livro coloca situações como essas de maneira bastante interessante, citando exemplos de como alguns autores conseguiam furar o bloqueio de editores, principalmente nos títulos menos visados, nos quais alguns roteiristas e desenhistas conseguiam até incluir temas políticos e sociais de forma velada, como o uso de drogas. Esse equilíbrio de tendências foi fundamental para a sobrevivência da editora, já que a radicalização para um ou outro lado certamente quebraria a empresa.

Hoje eu não leio mais quadrinhos de super-heróis como antigamente. Ao passarem os anos da minha vida, fui aos poucos deixando de lado essa vertente mais popular dos quadrinhos e me interessando por criações com temas mais adultos, como mostram as inúmeras resenhas de quadrinhos que eu já escrevi nesse blog. As grandes sagas que se estendem por anos, as reviravoltas, as tramas e subtramas que se encadeiam nas dezenas de revistas mensais já não me interessam como faziam durante minha infância e adolescência. Hoje em dia, as histórias nada mais são do que recauchutagens de tudo o que foi escrito nas décadas passadas por grandes nomes como Chris Claremont, Jim Starlin, Roy Thomas e tantos outros que eu adorava e ainda adoro ao reler minha coleção de gibis antigos. Não vejo mais graça em acompanhar mortes, ressurreições, perda e ganho de poderes e todas essas coisas que não tem fim, enquanto os personagens continuam com a mesma idade da década de 60. Já deu o que tinha que dar pra mim, fica agora para as gerações que iniciam seu caminho nesse mundo. Mas como fã de quadrinhos desde sempre, e com esse sentimento de companheirismo com os super-heróis da minha juventude que nunca me abandonou, obviamente essa leitura foi muito interessante para mim e me despertou muitos sentimentos - além de a leitura ter fluído facilmente e eu ter devorado as páginas em pouco tempo. Quando criança e adolescente, você não pode imaginar que a criação dos personagens e histórias que sempre foram o seu mundo pessoal passe por tantas situações escabrosas, ganância, passadas de perna, puxadas de tapete, jogatinas comerciais. Não se imagina que, para aquelas páginas terem chegado até você, muita gente passou dias e noites sem dormir para cumprir prazos ditados pelo mercado editorial, substituíram momentos com suas famílias nas manhãs de sol por confinamentos em seus estúdios, e alguns até morreram por causa disso. Marvel Comics: A História Secreta mostra todos esses episódios de paixão, dor, sacrifício e tudo o que os heróis passaram em todas essas décadas ao nosso lado - e aí você descobre que, na verdade, foi tudo o que os autores passaram em suas vidas. Foi tudo o que você passou na sua vida. E você chega ao fim do livro com um sentimento de profundo agradecimento por todos os heróis da vida real que fizeram a Marvel existir como ela é ou foi durante a sua existência.

Editora: Leya
Páginas: 560
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

sábado, 13 de setembro de 2014

Rascunho do novo livro de Alan Moore está pronto e tem mais de um milhão de palavras!

Os fãs do homem já podem comemorar: o rascunho do novo livro de Alan Moore finalmente ficou pronto! Em um trecho de uma entrevista publicado aqui no blog em 2010, Moore falava que seu livro já tinha mais de 1500 páginas. Agora, finalmente concluído, o calhamaço tem mais de 1 milhão de palavras, o que o torna maior que a Bíblia, ou com o dobro do tamanho de Guerra e Paz. Certamente será uma obra restrita para seus seguidores mais bitolados (me incluam nessa), o horror de qualquer editor com um mínimo de tino comercial. E Alan Moore não está nem aí pra isso: "Qualquer editor competente me diria para cortar dois terços desse livro, mas isso não vai acontecer." Esperamos que, de uma forma ou de outra, essa história possa chegar até nós.

Como dito na mesma entrevista, seu novo livro vai se chamar Jerusalém, e como o anterior, A Voz do Fogo, se passa em Northampton, sua cidade natal. Porém, se o primeiro explorava diversos momentos na história da localidade, Jerusalém tratará especificamente de seu bairro, explorando sua história familiar e a natureza do tempo, usando elementos de fantasia e experimentos de estilo que remetem a James Joyce, Samuel Beckett e John dos Passos. 

Foto: Murdo Macleod

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Quando eu era o Tal - Sam Kashner

Todo mundo já teve um ídolo na vida, um modelo a seguir, seja um artista, um jogador de futebol ou seu próprio pai ou avô, por mais iconoclasta que alguém possa ser. Alguém em quem se espelhar, que se deseja ser igual, enfim, alguém que você ache foda e quer pelo menos estar com essa pessoa. Sam Kashner, um judeu americano de classe média e vida tranquila de subúrbios de Nova York, um menino sem muitos atrativos para as garotas além do talento e gosto pela poesia, encontrou seus ídolos na Geração Beat: Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs, Gregory Corso. Ele queria ser um deles, queria viver aquela vida de liberdade e irmandade cáusticas narrada em On the Road, Howl, Naked Lunch ou Bomb. E o que era uma ilusão juvenil pareceu se transformar em realidade quando Ginsberg fundou a Escola Jack Kerouac de Poetas Desencarnados, que contava com a presença do próprio Ginsberg e todos os beats vivos na época (meados dos anos 70): Burroughs, Corso, Peter Orlovsky, além de grandes autores que não formaram o núcleo Beat original mas se destacaram posteriormente, como Anne Waldman. Sam Kashner não teve dúvidas em abandonar uma vaga no conceituado Hamilton College para se tornar o primeiro (e por um bom tempo o único) aluno de poesia da Jack Kerouac School. 

Inicialmente, o jovem poeta se vê realizando um sonho ao conhecer pessoalmente todos os seus heróis, fazer parte de seu mundo, comer na mesma mesa que eles, mas logo percebe que nunca poderia se tornar um deles, pois eles simplesmente não existiam mais! Como a excelente foto da capa mostra - Allen Ginsberg, Philip Whalen e William Burroughs como três pacatos vovôs em uma sauna -, os antigos Beats não estavam mais cruzando a América do Norte atrás de experiências extremas com sexo, drogas e jazz. Agora eles conversavam sobre problemas com hemorroidas, decadência sexual e questões administrativas de uma universidade em busca de um certificado. Bem, talvez exceto por Gregory Corso, que se negava a abrir mão de seu lado selvagem, e de quem Sam mais se aproximou durante sua passagem pela Jack Kerouac School, numa relação de amor e ódio.

Logo na primeira página, o autor emite uma advertência: "Por favor, não leia o livro se você estiver procurando (como eu estava no começo da década de 70) por uma história da Geração Beat." Não sei qual era a intenção dele em escrever isso, mas simplesmente não procede. Quando eu era o Tal é um livro de memórias sobre seu tempo ao lado das lendas Beat já velhas, sim, mas não por isso deixa de ser recheado das mais saborosas histórias dos velhos tempos daquela turma. Entre algumas tarefas como manter Corso longe das drogas para que termine seu livro ou finalizar um poema de Ginsberg sobre sua experiência em fazer sexo oral em Neal Cassady, Sam Kashner esmiúça o tanto que pode sobre as personalidades (quase sempre conflitantes) de seus heróis e descobre histórias que vão do emocionante ao perturbador. Pode não ser uma história da Geração Beat no sentido cronológico, de cabo a rabo, mas uma história que se faz por pequenas passagem esparsas. As citações a personalidades contemporâneas às histórias como Patti Smith, Bob Dylan, Keith Richards e os Beats mortos Kerouac e Cassady são constantes.

Entretanto, o ponto central do livro é mesmo a desconstrução dos ídolos, sua transformação em seres humanos comuns com todos os seus defeitos e qualidades, a mudança da idolatria para um sentimento de maior proximidade, a admiração através da amizade. Isso fica bem claro quando o autor começa a descobrir que seu ídolo pode ser tão fraco ao ponto de se deixar manipular por um guru de meia tigela que bebe, anda de Rolex e está sempre cercado de belas garotas, mas ao mesmo tempo recebe pequenos atos de ternura que só o convívio é capaz de produzir. E fica claro também que mesmo seres humanos comuns podem continuar a ser ídolos.

Paralelo a tudo isso, Quando eu era o Tal não deixa de ser um livro de memórias pessoais, com lembranças familiares, experiências amorosas, medos e expectativas. A intercalação de fotos dos Beats com fotos da vida privada do autor ao final do livro deixa claro esse viés. Acho que para alguém que não conhece a Geração Beat esse livro não será de muita utilidade e proveito, devido às suas referências do início ao fim, mas para os fãs da era mais doida da literatura, é uma leitura bastante útil em uma abordagem original.

Editora: Planeta
Páginas: 360
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *