sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Abutre - Gil Scott-Heron

Impossível imaginar fins dos anos 60 sem flores e cores, viagens psicodélicas, hippies na paz e amor, liberdade sexual e o início da Era de Aquário. Contudo, fazendo-se isso fechamos os olhos para todas as outras realidades existentes naquele momento em diferentes locais do mundo. A vida dos negros norte-americanos era uma delas, bem menos colorida que a dos jovens brancos que buscavam a paz para toda a humanidade em Haight-Ashbury. No Harlem, no Bronx ou no Brooklyn, os negros lutavam por algo bem menos importante para o resto da sociedade americana: sua própria sobrevivência. Afundados em desemprego, drogas e violência policial, os negros de lá são a prova de que nem todo mundo estava afim de sair na rua descalço com flores no cabelo quando se tinha antes que tirar a desvantagem de ter nascido com a cor errada, no local errado e no momento errado, mesmo cem anos depois da abolição da escravidão naquele país. Abutre, primeiro livro de Gil Scott-Heron (1970), apresenta a visão de jovens negros dos guetos novaiorquinos sobre essa época explosiva de intensa luta por direitos civis.

Essa visão é antes de tudo autêntica. O autor tinha apenas 19 anos quando lançou o livro, e vivia no mesmo local onde toda a trama se passa. Um jovem escritor, mas com uma impressionante maturidade para sacar bem diversas questões contemporâneas. 12 de julho de 1969. John Lee, um traficantes adolescente negro e gordo é encontrado morto. Quatro personagens que tiveram alguma relação com o cadáver relatam em primeira pessoa alguns acontecimentos do seu último ano de vida. As peças tendem a se encaixar progressivamente para que o crime seja solucionado.

Como um livro policial, Abutre é bom. O roteiro é bem feito, num ritmo seguro, sem furos. Mas como retrato daquela realidade, é melhor ainda. Os quatro personagens tem algo de valor a dizer sobre aquele momento. Quatro jovens, como Scott-Heron, que representam diferentes tendências daquela juventude, e talvez tenham um pouco do próprio autor. Spade, o traficante maioral da área admirado como bandido-herói. Junior Jones, o garoto que quer ser como Spade, mas não tem culhões para tanto. Afro, engajado na luta dos direitos civis e afirmação da negritude, acreditando no sucesso do coletivo antes do individual. E I.Q., um jovem dividido entre seu extraordinário talento intelectual e a vida mundana. Tratando especificamente da cultura e da vida dos negros norte-americanos, Gil Scott-Heron acaba antecipando um gênero que seria disseminado nos Estados Unidos nas décadas seguintes, chamado Blaxploitation (black + exploitation), filmes com temática específica sobre negros visando a audiência negra. O filme Shaft (1971) é um dos principais expoentes do gênero, mas se você procura algo mais peculiar, Blacula é a sugestão. 

Só pela criação de Abutre aos 19 anos, percebe-se que Gil Scott-Heron era um artista diferenciado, mas esse foi só o início de sua carreira. No mesmo ano, lançou seu primeiro disco, com poesias gravadas, e no ano seguinte um de música propriamente dita, porém sempre misturando poemas e letras fortes. A isso se deu o nome de Rhythm and Poetry (ritmo e poesia), que posteriormente ficou conhecido como RAP, ou seja, os fundamentos do Hip-Hop. O melhor exemplo disso é a ótima música The Revolution will not be Televised - um ritmo empolgante com uma letra combativa e rebelde, como tudo o que teve origem nesse tipo de música deveria ser, em vez das besteiras dos gangstas americanos ou dos nossos funks ostentação... 

Apesar de só ter lido esse livro agora, já curto Gil Scott-Heron como músico há alguns anos. O cara é muito bom em tudo o que se aventurou na vida. Seu intuito inicial era ser escritor, e apesar de ter obtido um ótimo resultado com Abutre, só escreveu mais um livro, The Nigger Factory (1972), sem tradução para o português. Recomendo o livro e uma lista de músicas para curtir junto da leitura. Infelizmente Abutre está esgotado, mas é encontrado facilmente em sebos. 

Editora: Conrad
Páginas: 229
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * *

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