Guarde bem esta frase, pois vamos revê-la mais à frente: Há duzentos anos, a corte portuguesa chegou ao Brasil, elevou a colônia a um estatuto superior (com a abertura dos portos e o Reino Unido), modernizou o Rio de Janeiro e abriu as portas para a independência do nosso país.
Pois bem, ótimo motivo para comemorar, fazer reportagens, explorar turisticamente, dar emprego para historiadores na tv (tem um que eu não vou citar nome - até porque eu não lembro de nenhuma obra importante dele - que está se fazendo nos noticiários matinais, explicando os pormenores do cotidiano da corte no Brasil, só falta dizer qual dos amantes de Carlota Joaquina era o mais bem dotado) e escrever livros. Aproveitando este apelo editorial, surgiu nas livrarias "1808", de Laurentino Gomes, jornalista que pesquisou por anos e anos esta passagem da história do Brasil.
“1808” não é uma obra de pesquisa histórica propriamente dita. Geralmente, os historiadores pesquisam aspectos específicos, como economia, política, ou mais específicos ainda, como vestimentas, comportamentos, etc. O que o autor fez foi compilar todo o conhecimento acerca do assunto numa obra generalista e informativa ao grande público. E fez muito bem.
Ao contrário de muitos colegas historiadores, não sou contra a iniciativa de jornalistas que escrevem livros sobre História e fazem dinheiro com isso. Muito pelo contrário, acho muito bom que a História esteja na moda, que os leigos e as pessoas medianas busquem um conhecimento útil, é muito mais produtivo para a sociedade ter um “1808” como best-seller do que um “Marley e eu” ou um “Pai rico, pai pobre”. Até mesmo o medíocre “A cidade do sol” ou o superestimado “O Código da Vinci” têm suas propriedades benéficas à alma: por mais fracas que sejam as histórias, suscitam no leitor uma busca pelo conhecimento daquele contexto. Na época do livro de Dan Brown, surgiram agências de viagens na Europa que refaziam o trajeto de Robert Langdon, o protagonista da aventura. Veja só que resultado interessante o best-seller trouxe para a vida de pessoas não muito ligadas à cultura. E pode-se imaginar também o mesmo efeito de 1808 sobre pessoas que não tem muito conhecimento em História, e isso faz com que, pelo menos por algumas horas, estas pessoas entrem na wikipédia atrás de informações sobre a História do Brasil, ao invés de entrarem em sites de fofoca para descobrir se é verdade, sei lá, o namoro entre a Luana Piovani e o Wolf Maia (putz, imagine só!).
Além da apelação comercial, 1808 está vendendo bem porque o autor escreve de forma agradável aos olhos não treinados em História, apresentando bem a História como um romance, apresentando os personagens de forma didática e narrando o episódio da vinda da corte para o Brasil com humor e curiosidades interessantes e às vezes cavernosas (numa passagem, ele diz que teve um padre que diz ter flagrado um empregado masturbando D. João – grotesco!). Para historiadores ou bons conhecedores desta fase da História do Brasil, o livro não apresenta grandes novidades, mas mesmo as partes mais manjadas da História ficam fáceis de ler na pena de Laurentino Gomes. Não tenho (e nem recomendo a ninguém) a arrogância de achar que não encontraria nada de novo num livro de 408 páginas, e apesar de ter sido um livro escrito para leigos e sua maior parte trazer explicações banais para um historiador, há passagens interessantes de curiosidades e pormenores que não se aprendem em livros técnicos, o que é interessante para professores ou guias de viagem.
Aos mais eruditos, o livro expõe alguns errinhos. Por exemplo, o Império Austro-Húngaro já está fundado no livro na década de 1810, enquanto na verdade estes dois países só juntaram as escovas de dentes em 1867. Mas tudo bem, prefiro que as pessoas sejam informadas que o Império Austro-Húngaro já existia em 1810 (e depois descubram a verdade) do que nem saibam que ele existiu. Outra deixa boa para os implicantes é a questão das fontes utilizadas pelo autor. Apesar de todos os livros de pesquisadores sérios consultados, Laurentino escreve no início da obra que consultou muito a wikipédia, apesar de saber das falhas da enciclopédia virtual e mutante, e recomenda a todos, sem esquecer de advertir para possíveis falhas no conteúdo e sugerir a confirmação das informações. Um historiador chato usaria tudo que um jornalista escritor de livros de História disse contra ele no tribunal, e isso seria um trunfo. Mas não sejamos chatos: o livro foi escrito para pessoas médias ou leigos em História, o tipo de pessoa que não compraria um livro importado de um brasilianista americano na Livraria da Travessa ou na Leonardo da Vinci para se especializar no assunto...
Mas uma ressalva que faço é a certas opiniões do autor. No meu entendimento, apesar dele demonstrar todas as falcatruas da corte e não tentar induzir o pensamento de que a vinda da corte foi importante e tal durante o livro, no final ele faz algumas suposições, insinuando que se não tivesse acontecido dessa maneira o Brasil não existiria, mas sim vários paises, como no restante da América Latina (um englobando Sul e Sudeste, o outro o Nordeste e outro o Norte. O Tocantins ele diz que seria uma incógnita – grande diferença). A partir de então, ele cita várias situações que poderiam decorrer disso, a maioria (ou todas, não me lembro) prejudiciais, argumentos do tipo contundente como “não existindo o Brasil, a Argentina seria a liderança da América Latina”, algo bem coercitivo para os brasileiros que odeiam Messi e cia nas eliminatórias e na Copa América (na Copa do Mundo não é preocupante, a Argentina não bota medo em ninguém). Não sou a favor deste tipo de especulação, a História é o que é, e não o que seria, mas se é para jogar com estas cartas, acho que o autor se esqueceu de dizer que, em contrapartida de o Nordeste se tornar um país pobre (na sua especulação), se livraria também de Vargas, JK, da Ditadura de 64, ou não, quem sabe. A independência não seria feita por uma membro da família real, não seríamos uma monarquia, ou não, quem sabe. É simplesmente inútil pensar sobre isso, mas é útil lembrarmos o que aconteceu, a parte de oportunidades comerciais da mídia e da indústria cultural, e assim retornamos à frase do início do texto, agora com a minha opinião pessoal:
Há duzentos anos, a lamentável, falida e anacrônica corte portuguesa chegou ao Brasil, abriu os portos da colônia numa época totalmente desfavorável, quando uma só potência se beneficiou e teve controle quase que absoluto sobre o comércio, modernizou o Rio de Janeiro às custas do resto da população de todo o território (que se beneficiou um pouco, mas nada comparável ao que teve que pagar) e abriu as portas da independência de nosso país de uma modo absurdo e totalmente alienígena a qualquer coisa que eu tenha estudado na vida, legando corrupção, atraso e desigualdade até hoje.
Editora: Planeta
Páginas: 408
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *
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