(Uma despretensiosa crônica - ou conto - autobiográfica dirigida aos amigos, para que eu não tenha que contar a mesma história uma porção de vezes.)
Dor na região abdominal e lombar, irradiante até o testículo esquerdo. Aguda, quase insuportável, súbita, constante, sem que haja posição do corpo, movimento ou pressão localizada que tragam o menor alívio. Afirmado pela certeza do senso comum e suposto pelos urologistas como a pior dor que um ser humano pode sentir, como se duas mãos invisíveis fizessem um trabalho silencioso e contínuo: uma dentro do meu corpo, apertando e torcendo meus órgãos internos do lado esquerdo, enquanto a outra, um pouco mais abaixo e do lado de fora, soca repetitivamente meu testículo. Uma dor de intensidade tão abismal que estimula o estômago ao vômito, independente de quanto alimento esteja sendo digerido lá. Uma agressividade tão animalesca que o corpo reage com febre e a urina sai bem escura, misturada com bastante sangue. No meio de uma crise de cólica renal, tem início minha história com Pedrita, intensa, íntima e de difícil compreensão alheia, que durou apenas três dias.
Na verdade, Pedrita e eu já convivíamos há meses, mas eu só fui capaz de notá-la neste momento difícil, que começou numa manhã de domingo. Uma dor de baixa intensidade no testículo esquerdo, supus o mais óbvio, que tivesse ocorrido algum tipo de choque durante a noite sem que eu tivesse percebido. Caminhando na rua, a dor aumenta, paro e sento para almoçar, a dor aumenta, saio do restaurante e tento me acalmar andando um pouco mais, agora já com as pernas abertas, como alguém com assaduras na virilha, a dor não para de aumentar. Volto para casa, ninguém além dos bichos, que percebem algo errado, mas nada podem fazer. Deito na cama, me contorço gemendo, depois de todas as posições possíveis, paro finalmente na fetal, talvez por instinto, o que não faz diferença nenhuma. Não consigo pensar em nada que eu possa fazer sozinho. Descarto a idéia de choque noturno com o testículo, penso em apendicite, uma doença que apresenta sintomas parecidos e que, pelas histórias que já tinha ouvido, sempre temi, principalmente se fosse acometido por ela durante uma viagem para um lugar ermo – e agora, pensava eu, durante uma tarde sozinho em casa. Não consigo pensar direito, mas pelo que me lembrava das aulas de biologia na escola, o apêndice fica no lado direito. Ou seria o duodeno, ou o pâncreas, aquela estrutura amarela toda enrugada? Para que serve o duodeno? E a bílis, será que tinha alguma coisa a ver? Cólon? Havia lido recentemente também sobre um artista com a Doença de Crohn. Não consigo pensar direito. Pego o telefone e ligo para minha mãe, nefrologista, antes que ela possa fazer a primeira pergunta do diálogo (“tudo bem?”) pergunto onde fica o apêndice, ela confirma minhas suspeitas. Antes que eu possa perguntar sobre bílis, pâncreas ou Crohn, ela me pergunta sobre meus sintomas, e constata crise renal. Minha mulher vem chegando mais cedo do plantão no posto de saúde, cancelado graças a uma greve de médicos. Falo ao telefone que não posso buscá-la no ponto de ônibus, que ela pegue um táxi para casa o mais depressa possível, por conta de uma emergência médica, sem mais detalhes. Minutos depois, saio de casa carregado por ela, me escorando pelos cantos, vomitando o que ainda restava dentro do estômago, os cachorros assustados nem ousam pular em mim e lamber minha cara agora.
Chegamos ao hospital, entro amparado na emergência, passando a frente daquelas criancinhas com dor de garganta e daqueles atletas amadores com o tornozelo torcido, e sou colocado na cama. Um rapaz me faz algumas perguntas, arria minha bermuda, aperta meus testículos, me faz mais perguntas, pressiona vários pontos na minha barriga, isso tudo dói demais, até mesmo abrir a boca para responder às perguntas. Ouço “ok, pode levantar a bermuda”, espetam meu braço, a dor continua, mas eu paro de pensar...
Acordei no mesmo lugar, ainda doendo, porém bem pouquinho. Minha mulher estava lá, me explicando algumas coisas, quando entrou outro médico, urologista, também com idade próxima da minha, e também querendo mexer nos meus testículos. Depois disso, fui levado de cadeira de rodas para a sala de ultrassonografia, e lá deitei em outra cama e tive que abaixar a bermuda mais uma vez, para ter minha intimidade invadida pelo terceiro médico da tarde. Ele disse: “Segura o p...” – parando no p de “peru”, ou “pau”, para depois reiniciar a palavra – “...pênis para cima, por favor”, e derramou um gel sobre minha região genital. Ficou alguns minutos passando o aparelho sobre meus testículos, espalhando aqueles gel e lambuzando tudo em volta – pênis, virilha, coxa, pelos –, para finalizar jogando algumas folhas de papel em cima de mim para que eu me limpasse e repetindo a sentença padrão: “Pode levantar a bermuda”. O ultrassom não constatou nada de errado com meu testículo, então fui mandado para a sala de raio X, onde foi feito mais um exame, mas pelo menos ninguém mexeu em mim ou me mandou arriar a bermuda.
Passada toda a tarde de domingo respondendo a perguntas, sendo apalpado, fazendo exames em aparelhos e sobretudo esperando, fui levado à sala do urologista e lá conheci Pedrita, não pessoalmente, mas através da imagem do raio X, que mostrou que ela tinha aproximadamente 3mm, e durante os três dias seguintes, enquanto ela não saiu do meu corpo, também não saiu da minha cabeça.
Voltei para casa no final da tarde, mesmo sentindo a dor voltar a ficar intensa, porque tinha esperança que se estabilizasse em um nível aceitável até que eu acordasse no dia seguinte sem sentir nada. Subestimei Pedrita, que se deslocava lentamente pelo meu rim esquerdo, abrindo caminho do jeito que dava, rasgando o que viesse pela frente. Saí de casa e cheguei ao hospital da mesma forma que anteriormente, diferindo apenas em um ponto: em vez de passar pela enfermaria, fui direto para a internação, carregado na cadeira de rodas.
A partir desse momento, não lembro muito bem o eu aconteceu. Na verdade, as duas vezes em que dei entrada no hospital foram muito parecidas, e realmente não tenho como distinguir o que se passou em cada uma delas nos momentos de dor intensa. Pode ser até que eu tenha imaginado coisas ou alucinado, já que passei a primeira noite inteira e o dia seguinte sendo drogado com uma substância derivada da morfina, e só consigo lembrar-me de duas coisas que certamente ocorreram no segundo momento: as ocasiões em que acordei agonizando durante a madrugada e chamei a enfermeira para me drogar um pouco mais, e a visita do quarto médico, pois lembro de ter falado em tom de humor autodepreciativo com minha mulher que, naquelas poucas horas, eu provavelmente já havia tido os testículos apalpados por mais homens do que em todo o resto da minha vida.
Acordei muito assustado no dia seguinte, de manhã bem cedo, achando que estava morrendo – ouvi várias pessoas rezando, e meu primeiro pensamento foi que estava recebendo a unção dos enfermos, logo eu, que desde a adolescência zombo de todo esse tipo de superstições, morrer desse jeito! O susto foi breve, logo relaxei ao perceber que não teria este lamentável fim, já que, apesar de próximas, as vozes vinham de fora do quarto – dei o azar de me internarem ao lado da capela do hospital, onde o plantão da manhã orava em uma só voz antes do expediente, e tive que acordar da mesma forma nos dias seguintes.
A oração coletiva não foi o único som estranho que me pegou de surpresa. Logo no primeiro dia, escutei uma tosse muito desesperada, a tosse mais gutural que já havia ouvido, e pensei que alguém estava morrendo. Passaram-se alguns instantes após a tosse cessar e não percebi nenhum tipo de movimentação pelos corredores, tudo voltou ao costumeiro de um hospital. Não entendi nada naquele momento, mas depois passei a ouvir a tosse com a mesma intensidade várias vezes ao dia, e cheguei à conclusão que ninguém poderia ficar às portas da morte num hospital tantas vezes sem que nada fosse feito, e que a cena que eu ouvia mas não podia ver era um a de velhinho com um cacoete brabo. Eu me lembrava do meu avô, que quando não tomava remédio para o sistema nervoso ficava do mesmo jeito, e todo mundo que ia lá em casa ficava constrangido e tentava prender o riso, até que a gente não aguentava e começava a rir junto. Eu me lembrava do início de “Minha Menina”, dos Mutantes, e começava a rir cada vez que a sessão de tosse tinha início. E esquecia um pouco de Pedrita, das agulhas espetadas no meu braço e de qualquer outra coisa que me causasse dor.
Tirando o motivo pelo qual fiquei internado aqueles três dias, posso dizer que essa minha temporada no hospital foi bastante agradável. Ora, eu era tratado como um hóspede num hotel, fui dispensado do trabalho, tinha comida pronta e não precisava limpar nada o que sujava, e tinha tempo para me distrair bastante. Se eu não tivesse chegado lá sentindo tanta dor e não tivesse que passar pela quantidade de exames e remédios injetáveis aos quais fui submetido, se eu pudesse paralelamente sair de lá de vez em quando para passear ou praticar alguma atividade física, isso sim seria viver em alto estilo.
A dor no rim e testículo diminuiu bastante já na primeira manhã, graças aos fortes sedativos, e deixaram de incomodar no segundo dia. Contudo, se o problema fosse tão simples assim, não haveria necessidade de internação e nada justificaria minha vida boa lá. A dor inicial simplesmente foi transportada para os braços, furados sem trégua até o momento em que saí do hospital (e doloridos, inchados e cheios de hematomas, durante toda a semana seguinte). Uma agulha ficava constantemente na mão esquerda, recebendo a medicação ininterruptamente, inutilizada para qualquer fim, até que, no segundo dia, a veia entrou em colapso, uma dor que me impedia de executar qualquer movimento, dava para ver o sangue voltando pela borracha que levava os remédios da bolsa suspensa até mim, e a mão direita passou a ser utilizada em seu lugar. Os enfermeiros até que tentavam desentupir a veia algumas vezes, apertando a borracha para que talvez os coágulos abrissem espaço para a medicação, o que me causava uma dor aguda ainda mais forte, mas não teve jeito. Nesse dia e no seguinte, fiquei praticamente inválido das mãos, conseguindo com muito esforço segurar a colher nas refeições ou um livro apoiado, contanto que não fosse necessário nenhum tipo de pressão com os dedos. Minha mulher executou o papel dos meus braços em quase todo o resto.
As outras veias dos braços serviam de bica por onde saía meu sangue para análise no laboratório, mas este não foi o único tipo de exame pelo qual passei nesses dias. Pressão arterial e temperatura eram medidas várias vezes ao dia e anotadas numa prancheta, e pelo menos umas duas vezes tive que urinar em potinhos de coleta. Exames mais apurados, em máquinas, eram minha única oportunidade de passeio pelos corredores do hospital, mesmo que fossem de cadeira de rodas. Raios X simples, que eu já conhecia, foram dois ou três, mas experiência inédita para mim foi entrar numa sala onde se lia na porta “Tomografia”, depois de tomar uns cinco copos d’água para que minha bexiga ficasse bem cheia. Deitei numa cama fria e me aplicaram mais um remédio na veia, que me explicaram que seria para fazer “contraste”, sabe-se lá do que com que. A mulher que estava me atendendo falou que eu poderia sentir enjoo, que ela ficaria em outra sala atrás de mim, e que em caso de qualquer problema era só eu levantar o braço, mas fiquei tão curioso com aquela máquina que nem senti nada. A cama então começou a se mover, me deslocando para dentro de um círculo, como se eu fosse um dedo entrando num anel projetado para um dedo mais largo. Havia um monte de luzes piscando, de várias cores, e não pude examinar todas elas antes que a cama terminasse sua locomoção. Fiquei com a cabeça bem no meio do anel, e observei que dentro dele havia uma espécie de centrífuga girando, com luzes vermelhas, fazendo barulho, o que provocou em mim a sensação de estar estrelando um filme de ficção científica da década de 1970. De repente, uma voz de homem saiu de algum alto-falante dizendo – “respire fundo” –, e uma imagem de um rostinho com a boca aberta se acendeu no aparelho, tipo smile, só que de perfil, bem em frente ao meu rosto. A voz imediatamente ordenou, roboticamente – “prenda a respiração” –, e a imagem mudou para um rostinho de boca fechada com as bochechas cheias de ar, quando um outro painel mostrou uma contagem regressiva começando em seis segundos. Terminada a contagem, a voz liberou minha respiração. O processo teve início novamente, da mesma forma, só que dessa vez a contagem começou em trinta segundos, me pegando desprevenido, pois eu puxei ar preparado para apenas seis! Na terceira vez, jurei que a máquina não ia me surpreender novamente, e puxei o máximo de ar que pude, mas a contagem começou novamente a partir de trinta segundos, e isso foi tudo. A cada tentativa eu podia observar algumas luzes e imagens que não havia tido oportunidade anteriormente, e na última reparei que tinha aquele símbolo de três lados que significa material radioativo, com umas setinhas apontando para a minha direção. Juntei aquilo com as outras vezes em que fui submetido ao raio X nas últimas horas, mais um exame que havia feito há alguns meses e todos os outros em minha vida, e aquele somatório mórbido me apavorou um pouco. Ao final, tive que esperar o resultado deitado na mesma cama, para o caso de algo ter dado errado e eu ter que fazer tudo de novo. O homem que me mandava prender e soltar a respiração disse que minha bexiga estava muito cheia, e que se eu não aguentasse podia ir ao banheiro, mas eu não sentia nenhuma vontade de fazer nada, só pensava na possibilidade de algum futuro filho meu nascer mutante.
Na manhã do segundo dia, o urologista que cuidava do meu caso me fez uma visita no quarto, explicando qual era minha situação. Pedrita já havia saído do rim, e encontrava-se na uretra. A notícia era boa, mas nem tanto: caso ela não saísse naturalmente nos próximos dias, eu teria que ser submetido a um procedimento para sua retirada, o que significava que alguém iria enfiar um tubo pelo meu pênis para sugá-la. A ideia é talvez até mais aterrorizante do que a de realizar uma colonoscopia, portanto passei a beber uma quantidade considerável de água e urinar mais de dez vezes por dia, não na privada, mas numa bacia metálica, tendo que, em todas as ocasiões, verificar se Pedrita já havia saído. Cada tentativa sem sucesso era desanimadora, progressivamente.
Apesar da emergência desse grande problema pessoal, eu tinha bastante tempo para me distrair, já que não havia nada mais o que fazer. Tive a oportunidade de ler Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, em um dia, algo impensável em circunstancias domésticas normais, e assisti a alguns filmes na TV a cabo, dessas porcarias dirigidas pelo Clint Eastwood nos últimos tempos até filmes divertidos da década de 1980, como Karate Kid e uma ótima comédia chamada Private Resort, apresentando um jovem ator chamado Johnny Depp. O resto do tempo eu comia, perturbava minha mulher, falava no telefone com alguém preocupado, dormia e era examinado e medicado.
A contagem regressiva para a devassa definitiva do meu corpo prosseguia, meu pai ligava várias vezes perguntando se eu já tinha dado à luz, até que na manhã do terceiro dia, ao urinar, pude sentir Pedrita saindo pela minha uretra. Fiquei bastante eufórico para conhecê-la pessoalmente, observar seu tamanho certo e sua cor. Esperei a espuma da urina se dissipar para procurá-la, sentindo ainda um desconforto, que supus ser causado pela passagem de Pedrita pela uretra, porém, depois de vasculhar a bacia de todas as maneiras possíveis, não encontrei nada sólido. O desconforto continuava, bem na glande, portanto Pedrita ainda estava lá, mas não pude imaginar uma situação tão insólita: Pedrita estava quase saindo, a ponto de eu poder enxergá-la. Entretanto, cada vez que eu tentava retirá-la, sentia dor e não conseguia sequer movê-la. A agonia era grande, mas não havia nada o que fazer a não ser beber uns cinco copos d’água e esperar.
Minutos depois, finalmente pude expelir Pedrita e me sentir aliviado, tendo a certeza que não seria naquela ocasião que alguém iria enfiar o que quer que fosse pelo meu pênis. Observei bem Pedrita, ela era preta, menor que qualquer grão comestível, um pouco maior que a cabeça de um alfinete, e fiquei ali um tempo refletindo sobre a fragilidade do ser humano, vencido por algo tão pequeno. Deixei a bacia lá intocável, para que o médico também a analisasse – o que só aconteceu à noite. De vez em quando entrava alguma mulher querendo limpar o banheiro, e eu explicava toda a situação e que a bacia de urina tinha que ficar lá esperando o médico e tudo mais, e que além disso em questão de algumas horas eu ia ter alta e não havia necessidade para limpar mais nada para mim. Elas olhavam de modo estranho, achando graça, como se eu fosse um cachorro guardando um osso sem deixar ninguém chegar perto. Talvez elas estivessem achando que eu estava perturbado, obcecado com aquilo tudo, e que naquele momento Pedrita fosse a coisa mais importante para mim.
Amigo, pondo de parte o seu sofrimento, a sua crônica me pareceu bastante divertida, alternando momentos de extrema tensão e comicidade,sem falar na riqueza de detalhes, que você omitiu quando me contou o caso. A sua crônica ficou muito boa. Espero que você se recupere o quanto antes. Abraço do Marcelo
ResponderExcluirValeu, Marcelo! Nas conversas eu esqueço muitos detalhes das coisas que eu conto, escrevendo, aos poucos, fica mais completo, apesar do risco de incorrer em erros de português, que devem existir, porque publiquei antes de passar pela sua revisão, mas eu me esforço bastante para lembrar as dicas que você nos passa toda vez que a gente se encontra, hehehe. O "Comunicação em Prosa Moderna" vem ajudando também.
ResponderExcluirJá estou recuperado, tenho até jogado bola e lutado, apesar de sentir dor quando levo algum choque nas mãos, que ainda estão inchadas por causa das malditas agulhas. O negócio agora é beber água feito louco e tomar os chazinhos naturais. Abração!