domingo, 23 de janeiro de 2011

Mas não se mata(m) cavalos? Horace McCoy


Antes de qualquer coisa, alguém poderia dar uma explicação científica sobre a correção gramatical deste título adaptado para o português: afinal, "não se mata", ou "não se matam cavalos"? Quase todas as edições brasileiras apresentam a primeira forma, porém a mais atual, da L&PM é escrita do segundo jeito.

O pequeno livro de estreia de Horace McCoy mostra uma maratona de dança em Hollywood na época da Depressão (década de 1930), onde os pares devem dançar ininterruptamente (ou pelo menos balançar o corpo emulando alguma dança) durante semanas, somente com pequenos intervalos de dez minutos. O par campeão leva para casa um prêmio de mil dólares e todos têm abrigo e alimentação garantidos durante o evento. Logo no início, o leitor fica ciente que a história termina com o competidor Robert Syverten assassinando sua parceira Gloria Beatty com um tiro na cabeça, a pedido dela, e então o protagonista conta sua história desde o momento em que conheceu Gloria até sua condenação.

Li uma crítica a respeito de Mas não se mata(m) cavalos? na qual o livro era muito elogiado e o autor comparado a Hemingway, e por isso tive interesse em lê-lo, mas fiquei muito desapontado com esta leitura. Quem fez essa comparação entre os dois autores nunca deve ter lido Hemingway. O sol também se levanta foi um dos primeiros livros sérios que li na adolescência, e lembro-me até hoje do impacto que aquelas passagens introspectivas produziram em mim, uma escrita diferenciada que eu nunca tinha visto (e até hoje tenho-as como exemplo do que eu quero ser quando crescer!). Até O Velho e o Mar, monótono do início ao fim, tem seu mérito pela extrema qualidade da escrita de Hemingway. Nada disso é visto em Horace McCoy, tudo me pareceu superficial em sua escrita: personagens, descrições, impressões do protagonista, além de uma trama sem graça e previsível - e minha leitura foi ainda mais prejudicada pela tradução obsoleta e com trechos claramente equivocados de Érico Veríssimo numa edição de 1982 da editora Abril. Enfim, quem inventou essa comparação com Hemingway forçou a barra.

Apesar dessa comparação ter me causado uma grande decepção, Mas não se mata(m) cavalos? não é um livro ruim, apenas mediano, e se seus méritos não estão nas capacidades literárias do autor, há que se ter boa vontade com a justa análise de Horace McCoy sobre os Estados Unidos de seu tempo. A sociedade apresentada pelo autor é aquela que se desenvolve paralelamente ao modelo industrial do século XX, da produção e consumo em massa, no qual a obsolescência programada e o rápido descarte são as bases para o avanço. A maratona de dança mostra que as próprias pessoas fazem parte deste processo de descarte, sobretudo na indústria cultural de Hollywood, que estava em seu apogeu - a condição para ganhar o concurso não é o talento, ou a qualidade da dança dos participantes, mas a capacidade de resistir a semanas de esforço físico desumano; das dezenas de pessoas inscritas, apenas um par ganharia o prêmio, enquanto os outros sacrificam-se por quase nada. Do lado de fora, o público acompanha e torce por algum desses desconhecidos durante algumas horas, vai para casa, dorme, cumpre seus compromissos, e no dia seguinte volta para mais algumas horas de diversão. Tendo hoje que aturar praticamente todos os meios de comunicação falando sobre Big Brother durante a maior parte do ano, a impressão é que a indústria do entretenimento não evoluiu nesse aspecto durante as últimas oito décadas.

Os personagens, apesar de não muito elaborados, retratam as duas opções numa sociedade como essa: integração total ao sistema ou rompimento definitivo. Robert sonha com o estrelato em Hollywood, e vê a maratona como um dos poucos meios de ser encontrado por alguma figura importante do cinema; Gloria é uma niilista que odeia tudo isso, e aceita participar do evento porque não tem outro meio de sobrevivência. Outros personagens secundários representam o público irracional, os empresários inescrupulosos, representantes de empresas e figuras típicas da ambígua sociedade americana como gangsters e moralistas. A relação entre os participantes e os de fora mostra a condição de exploração a qual são submetidos os despossuídos, chegando em muitos casos à exploração sexual.

Horace McCoy não tem uma escrita exemplar, mas escreve sobre temas importantes como um analista atento ao contexto em que viveu. Na média, Mas não se mata(m) cavalos? é regular, e até por ser pequeno, pode ser lido em uma tarde como passatempo descompromissado. Não fez sucesso à época de seu lançamento nos Estados Unidos (1935), mas recebeu atenção uma década depois, através de uma edição francesa. Foi transformado em filme em 1969 (A noite dos desesperados), com Jane Fonda interpretando Gloria Beatty.

Editora: L&PM
Páginas: 150
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *

5 comentários:

  1. Nando, sendo cavalos o sujeito da oração, a frase "Mas não se matam cavalos?" deve ser considerada como gramaticalmente correta.

    Ex. Vendem-se casas = Casas são vendidas.
    Alugam-se bicicletas = Bicicletas são alugadas.

    Devemos nos pautar pelo fato gramatical de que o sujeito concorda com o verbo.

    Esta estrutura que eu acabo de descrever chama-se voz passiva pronominal.


    Existe em português uma estrutura que se confunde com esta e costuma causar muita confusão por parte dos falantes.

    Quando eu digo: Na Inglaterra vive-se bem.

    Neste caso, de acordo com a regra, não existe a necessidade de fazer a concordância do verbo com o sujeito, uma vez que este sujeito chama-se inderterminado.

    Equivaleria a dizer: Na Inglaterra (não importa quem)vive-se bem.

    Portanto, a oração usada pela LPM fica como a gramaticalmente correta.

    Espero ter podido ajudar.

    Marcelo.

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  2. Eu queria ter nascido num país onde a língua oficial fosse esperanto... Valeu pela ajuda, Marcelo!

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  3. Ah, não diga isso!! Imagine, uma lingua artificial e sem identidade ... o seu pragmatismo assusta,Fernando. E a nossa identidade cultural, onde fica? Eu entendo perfeitamente Fernando Pessoa quando ele disse que sua patria era a lingua portuguesa. Entenda-se por patria sobretudo identidade. Ele disse isso com mais propriedade do que a gente poderia dizer, por ser português, mas isso não tira o direito de dizer o mesmo. Não troco meu bom e velho português por nenhum outro idioma.

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  4. Língua artificial, sem identidade e... sem exceções às suas poucas regras! Você sabe que não renego o português (pelo contrário, como estudo!) e que o lance do esperanto é só uma provocação, mas concordamos que essa última reforma ortográfica foi uma incrível perda de oportunidade para racionalizar o idioma, não? Para mim, todas as oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas deveriam ser acentuadas, em todos os idiomas do mundo, ninguém mais erraria a escrita, e não haveria mais dúvidas quanto à pronúncia.

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  5. Agora vc voltou a falar a minha lingua ... rsrsrsrsrs Valeu!

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