domingo, 28 de novembro de 2010

Memórias de Adriano - Marguerite Yourcenar

A fascinante história do Império Romano começa com Otávio Augusto, no século I a.C., um dos imperadores mais estáveis, que governou por cerca de 40 anos. Após sua morte, Roma teve imperadores de todos os tipos, desde competentes administradores, como o primeiro, a loucos, usurpadores, paranoicos e irresponsáveis que eram assassinados poucos meses após serem coroados. A lista de imperadores durante a história de Roma é muito extensa, tendo governantes para todos os gostos, e Marguerite Yourcenar, escritora belga educada impecavelmente à maneira clássica (aprendeu latim e grego na infância), utilizou um dos mais bem sucedidos imperadores romanos para criar uma autobiografia fictícia em Memórias de Adriano, seu livro mais famoso e que a levou ao estrelato literário.

Adriano foi um dos chamados "cinco bons imperadores", a era mais gloriosa do império, durante a qual Roma era senhora absoluta e estável de todo o Mediterrâneo, sem riscos de ataques sérios aos seus domínios, e mais nenhuma guerra de expansão sobre outros povos. O imperador Trajano foi o último a conquistar territórios para Roma, situação que Adriano, seu sucessor, não via com bons olhos (pois esses territórios só seriam mantidos com esforços desnecessários), e logo que chegou ao poder tratou de negociar e devolver áreas instáveis, mantendo então a estabilidade conhecida como pax romana. Adraino governou durante 21 anos nessa Era de Ouro, e no livro de Marguerite Yourcenar ele aparece já no final da vida, escrevendo uma longa carta para seu sucessor, Marco Aurélio, onde conta sua vida inteira e orienta o futuro imperador. Nesta carta, Adriano aborda tanto assuntos de Estado (as negociações no Oriente, a guerra contra os judeus) como suas intimidades (sobretudo seu amor por um rapaz chamado Antínoo).

Memórias de Adriano é um livro em primeira pessoa de um homem escrito de forma impecável por uma mulher, tarefa em si difícil, e apresenta muita beleza em diversas passagens, todas cuidadosamente criadas, já que demorou cerca de três décadas para ser concluído, tendo diversas versões preliminares destruídas pela autora (em certo momento de suas anotações, ela escreve: "Projeto abandonado de 1939 a 1948. Pensava nele por vezes, mas com desânimo, quase com indiferença, como no impossível. E quase me envergonhava de ter algum dia tentado semelhante coisa). Mas por que não ter utilizado uma personagem feminina próxima de Adriano para contar sua vida? A autora justifica nas anotações ao final do livro: "Impossibilitada também de tomar como personagem central uma figura feminina, de dar, por exemplo, como eixo à minha narrativa Plotina em lugar de Adriano. A vida das mulheres é demasiado limitada, ou demasiado secreta. Basta que uma mulher narre sua história e a primeira censura que lhe será feita é a de deixar de ser mulher. Já é bastante difícil colocar qualquer verdade na boca de um homem".

Contudo, parece-me que houve uma identificação da autora com a pessoa de Adriano suficiente ao ponto de diferenças sexuais não serem empecilho para uma autobiografia fictícia nesse sentido. Não que seja uma autobiografia da autora nas palavras de um personagem histórico, o que ela própria nega veementemente, mas uma pessoa com uma educação tão refinada não poderia deixar de se identificar com um imperador que tinha tanta afinidade com a cultura de seu tempo, sobretudo a grega. Uma frase muito marcante no livro diz tudo: "O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros".

Prova da erudição de Marguerite Yourcenar é o conhecimento profundo de tudo o que é tratado no livro, ou seja, a narração em primeira pessoa é perfeitamente realista, pois todos os assuntos são abordados com a naturalidade de alguém que vivia na época: nomes de povos, geografia, pessoas, etc. Para isso, a autora se escorou em ampla pesquisa durante todas as décadas da produção do livro, o ao final constam referências bibliográficas específicas, ao ponto de conter livros até sobre numismática romana.

Memórias de Adriano é um livro sem falhas, envolvente e de escrita superior, e não por acaso tornou Marguerite Yourcenar a primeira mulher a ser eleita para a Academia Francesa de Letras. Para mim foi muito bom, mas acho que o leitor que não tiver interesse na história de Roma não terá paciência para os longos trechos de divagações filosóficas ou de descrições históricas. Para quem tem esse tipo de interesse ou quer ler um livro essencial entre os grande clássicos, eu recomendo.

Editora: Saraiva
Páginas: 320
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

4 comentários:

  1. Fernando, vc assistiu ao filme 'Caligula"? Leia esta sinopse e não leve em conta a falta de acentuação das palavras.
    "Caligula e uma das mais polêmicas produções do cinema. O unico que mostra o show de perversões que o Imperio Romano escondia, e conta a historia de Caligula, o mais louco dos imperadores, que mantinha um bizarro caso sexual com a irmã e, casado com a mais infame das prostitutas. Ao mesmo tempo em que Caligula vivia cercado de bajuladores, tinha tambem inimigos perigosos, loucos para vê-lo longe do poder. Superprodução com elenco de primeiro time onde se destacam Malcolm McDowell, Peter O'Toole, John Gielgud e Helen Mirren, Caligula e um filme que choca pela sua beleza e naturalidade com que trata temas considerados tabus pela sociedade". Se vc não tiver visto e se interessar, posso te emprestar.Comprei uma caixa com três discos: um com a versão remasterizada, outro com a versão original e um terceiro com cenas extras, mas tão bem-feitas que mais parecem um documentario sobre o filme, polêmico do começo ao fim. Abraço. Marcelo.

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  2. Ainda não vi, vou querer emprestado sim. Eu sempre falo de Calígula com meus alunos como um exemplo de mau imperador, mas não comento esses pormenores da sua vida sexual, falo apenas do cavalo que ele queria colocar no senado.

    Quando eu era criança-adolescente, esse filme passava na Bandeirantes bem tarde, e eu tentava ficar acordado para ver sa tais cenas proibidas que todo mundo dizia, mas eu nunca conseguia e sucumbia ao sono.

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  3. Eu não o cosiderei mau, mas excêntrico e ate mesmo lunatico. Seria possivel desenvolver esse tema da personalidade dele de forma bem rica, pois a forma como ele age em certas passagens do filme causa estranhamento, em outras nem tanto. Quanto as cenas de orgias promovidas por ele, chegam a chocar pelo realismo hoje em dia, imagine na epoca em que foi gravado o filme...finalmente vou poder te emprestar um filme ao qual vc ainda não assistiu...rsrsrs Valeu!!

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