sexta-feira, 2 de maio de 2014

Lost City of the Incas - Hiram Bingham

Se hoje Machu Picchu é um ícone nos destinos de viajantes do mundo inteiro, muito se deve à sua condição de cidade perdida, ou seja, que ficou longe dos olhos de quase toda a humanidade durante séculos, até ser redescoberta por Hiram Bingham em 1911. Tendo a noção de que havia feito talvez a maior descoberta arqueológica de todos os tempos, Bingham decidiu contar a peripécia em Lost City of the Incas, em 1948.

O livro se divide em três partes, que parecem três livros diferentes: a primeira é um livro de História sobre a civilização Inca, narrando seus primórdios até seus últimos dias, além de explicar aspectos fundamentais de sua cultura; a segunda parte é uma narrativa de uma viagem de aventura na selva peruana, quando o arqueólogo conta sua trajetória até encontrar a cidade perdida; o último terço se transforma num livro de arqueologia, explicando as escavações em aspectos técnicos, os resultados e a interpretação de seu trabalho. Não é só uma divisão retórica, são realmente três livros diferentes, com abordagens e resultados distintos, o que me fez me dividir em minha avaliação.

A primeira parte me pareceu bem satisfatória, uma explicação simples, sem muito academicismo, para ambientar qualquer leitor no teor do livro. A segunda foi para mim a melhor, já que sou apaixonado por viajar e ler narrativas de viagens alheias - e essa é uma narrativa bastante cativante, de um americano em contato com uma cultura bem diferente à que estava acostumado, num ambiente difícil e desconfortável. Até aí o livro anda muito bem, mas a última parte é um suplício, uma leitura enfadonha - como já era de se esperar de um texto sobre arqueologia, dada minha experiência anterior com esse tipo de trabalho.

Hiram Bingham nasceu no Avaí, e além de arqueólogo e explorador, foi político e militar. Sua façanha de ser o descobridor de Machu Picchu é contestada pelo fato de algumas pessoas já terem chegado lá alguns anos antes: um alemão na década de 1860, dois peruanos no início do século e dois missionários em 1906, além dos moradores da região. Entretanto, mesmo que essas pessoas tivessem alcançado a cidade perdida antes, o mérito de torná-la conhecida para o mundo foi de Bingham. A cidadela foi descoberta por acaso, através de um palpite de Bingham, guiado por um garotinho que conhecia a área e estava totalmente coberta de vegetação e infestada de serpentes. Hiram Bingham interpretou erroneamente o local como a última cidade dos incas que ele procurava - Ollantaitambo, que posteriormente foi descoberta em outro lugar, porém sem nenhum brilho. Machu Picchu é hoje um dos destinos de viagem mais famosos do mundo. Não tem uma visitação tão grande como o Coliseu ou Teotihuacan por causa da distância dos centros urbanos, mas ainda assim recebe uma horda de turistas, muitos deles predadores de patrimônio histórico, o que põe em risco esse legado deixado para toda a humanidade.

Encontrei esse livro numa loja em Cusco, quando viajei para conhecer Machu Picchu em 2012. É o livro mais fácil de se encontrar por lá, vendido em todos os cantos da cidade por preços bem baixos, em inglês ou espanhol - acho que é meio como uma leitura obrigatória para quem se interessa. Fora do Peru, não é difícil encontrá-lo pela internet, mas não há edição em português e dificilmente alguém vai achá-lo para vender em uma loja por aqui. Mesmo se você nunca foi a Machu Picchu, recomendo a leitura se gostar de história ou relatos de viagem. Se você já foi ou pretende ir, não deixe de ler, é obrigatório para melhor compreensão desse lugar. E se você não pretende visitar Machu Picchu, mude de ideia: é magnífico, e mesmo abarrotado de turistas de todos os tipos, ainda se consegue descobrir alguns cantos de paz e silêncio para contemplar a natureza e as ruínas de uma civilização perdida na beira de abismos sublimes.

Editora: ABC
Páginas: 252
Disponibilidade: importado
Avaliação: * * * *

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Delta de Vênus + A Fugitiva - Anaïs Nin

De onde menos se espera, surgem as melhores coisas, já dizia meu avô em sua sabedoria pantaneira. Delta de Vênus, um dos grandes clássicos da literatura erótica, começou como um trabalho pago por um misterioso homem rico com fetiche por histórias de sexo. "O colecionador", como era conhecido, pagava um dólar por página para escritores que vivam em Paris na década de 1940, exigindo apenas que os trabalhos fossem meras descrições de atos sexuais, sem abordar aspectos psicológicos ou análises de sentimentos. "Menos poesia", dizia o misterioso contratante. Os trabalhos eram para seu consumo pessoal, e mesmo que um dia fossem publicados, com essa premissa tinham tudo para serem esquecidos pela história da literatura, como serão em breve os 50 tons de besteirol que estão na moda atualmente. Só que as tais historietas eram escritas por gente como Henry Miller e Anaïs Nin.

Publicado postumamente em 1977, Delta de Vênus é a compilação dos trabalhos escritos por Anaïs nesse contexto. Precisando de dinheiro, ela fica sabendo do negócio através de Miller e topa trabalhar para o colecionador, mas seu orgulho de escritora a impede de ceder aos seus caprichos castradores. Anaïs então ignora a parte do "menos poesia" e cria grandes histórias eróticas que se tornariam modelos para o gênero posteriormente. São dezesseis contos, alguns relativamente concatenados, de variados tamanhos, que abordam todo tipo de temas e tabus como prostituição, infidelidade, incesto e as mais variadas taras, cutucando o moralismo e até o eticamente aceitável, como pedofilia e sexo com animais. A qualidade da escrita é exemplar, mas o interesse suscitado é variável: alguns contos são excelentes, prendendo a atenção do leitor até o fim; outros nem tanto, tornando-se às vezes um pouco repetitivos.

Em 1976, pouco antes de morrer, Anaïs Nin escreveu um pós-escrito onde analisa seus antigos textos olhando retrospectivamente, e chega à conclusão que sua escrita era muito influenciada ainda pelas obras eróticas que havia lido, até então exclusivamente masculinas, mas compreende que sua feminilidade não foi completamente suprimida. Dizia ela: "Em numerosas passagens usei intuitivamente uma linguagem de mulher, vendo a experiência sexual do ponto de vista da mulher. Finalmente decidi liberar a erótica para publicação, porque mostra os esforços iniciais de uma mulher em um mundo que fora de domínio dos homens." Sem dúvidas, Delta de Vênus é um exemplo de erotismo marcadamente feminino, e difere bastante, por exemplo, da visão colocada por Henry Miller em seus livros.

Delta de Vênus está disponível no Brasil em edição burocrática da série pocket da editora L&PM. Da mesma editora existe a edição brasileira da segunda coletânea de contos eróticos de Anaïs Nin, intitulada Pequenos Pássaros, de 1979. Antes de ler Delta de Vênus, me chegou às mãos um pequeno livro da mesma editora, de uma "coleção 64 páginas", denominado A Fugitiva, que nada mais é do que o conto que dá o nome da edição, presente em Pequenos Pássaros, mais dois contos já publicados em Delta de Vênus, ou seja um coletânea de duas outras coletâneas editada para que o conteúdo coubesse no formato da tal coleção, o que não me parece uma coisa muito correta a se fazer, mas analisando a postura de muitas editoras brasileiras, em nada me surpreende.

Editora: L&PM
Páginas: 301 e 64
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O Som da Revolução, Um História Cultural do Rock, 1965-1969 - Rodrigo Merheb

Houve um tempo que a juventude decidiu mudar o mundo, e não só como seu antecessores - as mudanças de hábitos dos "anos loucos" da década de 1920, dos beats e do rock'n'roll simplório da década de 1950. Em meados da década de 1960, a juventude queria mudanças pra valer: a guerra tinha que acabar imediatamente, os valores da classe média ocidental deviam ser demolidos, a liberdade individual deixaria de ser só uma alternativa. E essa garotada teve a dádiva de contar com o som perfeito ao seu redor para lutar por tudo que exigiam, o som do rock.

Em O Som da Revolução, Um História Cultural do Rock, 1965-1969, Rodrigo Merheb utiliza as dezenas de bandas maravilhosas que surgiram no período para analisar o ambiente de efervescência social que virou a cultura de cabeça para baixo no período, transformando-a na nova onda de contracultura, e certamente a mais famosa (a primeira foi a dos beats). Como o autor coloca na introdução, "Os anos 1960 forneceram matéria-prima para mais teses acadêmicas, livros, biografias e relatos do que provavelmente qualquer outro período do século XX, com exceção da Segunda Guerra Mundial". Apesar de eu não ter ideia com que base um cara pode dar uma afirmação dessas, valeu, dá pra entender que é para ilustrar o fascínio que essa época exerce sobre as pessoas ainda hoje - a capa da Rolling Stone do mês passado, advinha: Jim Morrison... Realmente, são muitas passagens marcantes e imagens que ficaram na mente das pessoas, como o Jimi Hendrix tacando fogo na guitarra.

E agarrado nesse interesse geral que também lhe é particular, Rodrigo Merheb resolveu escrever sobre essa passagem da longa jornada da humanidade, utilizando o rock como linha condutora. Ou será que é o contrário? É a impressão que o texto às vezes passa, que o autor, na verdade, queria mesmo era falar sobre o rock em si, e pegou a parte da história cultural para justificar ou abonar o trabalho - sem que isso tire seus méritos, claro. Não é difícil perceber a paixão do autor, que trabalha como oficial de chancelaria no austero Itamaraty, em cada frase dedicada às suas bandas prediletas. O resultado é uma enorme quantidade de páginas de trabalho em estilo jornalístico sobre os causos bizarros de Janis Joplin, Keith Moon e cia, intercalados por análises menos expressivas sobre a cultura daqueles anos.

O recorte temporal - segunda metade da década de 1960 - é limitado por dois eventos musicais: Newport, quando Bob Dylan surpreendeu a plateia folk com uma guitarra elétrica, e Altamont, no esfaqueamento de um jovem negro pelos fascistas dos Hell's Angels que decretou o fim da era paz e amor. E entre esses dois eventos chaves, 14 capítulos passam por esses cinco anos, abordando temas como bandas da Califórnia, da costa leste ou britânicas, a cultura das drogas alucinógenas, a reação da sociedade ao rock e, é claro, muitos detalhes sobre o festival dos festivais, Woodstock. Como epílogo, o autor disserta sobre o que aconteceu com o rock nos anos seguintes a Altamont, dando um gostinho de quero mais, de arrumar logo um livro que fale sobre a decadência anunciada por Ziggy Stardust e o fim do mundo profetizado pelo punk. Ao final ainda há uma discografia básica sobre todas as bandas tratadas no texto, bem como filmes e livros a respeito.

Durante a leitura do livro nos certificamos o porquê de tanto interesse das pessoas nessa época, e a gênese da má fama que o rock reserva para si até hoje. O Som da Revolução, apesar de pecar em não se concentrar muito no tema que se propõe a abordar (uma história cultural, até porque o autor não é um historiador e carece de método), é uma bela leitura para quem ama o rock, mas talvez não sirva muito bem para quem desconhece o básico do período, pois como já escrevi, o texto é basicamente sobre bandas.

Hoje, a juventude do nosso país e do resto do mundo voltou a buscar a mudança - dos protestos contra o aumento de passagem à resistência da praça Tahir -, mas infelizmente não há mais uma trilha sonora adequada para isso. O jazz, que embalou os rebeldes da Geração Perdida à Geração Beat, se tornou música de fundo para velhos decadentes em restaurantes caros no exterior pondo em prática seus conhecimentos adquiridos em cursinhos de enologia. O reggae, o ritmo que gritou para o mundo as injustiças que os países pobres passavam, nas letras de gente como Bob Marley e Burning Spear, deixou pra trás sua fase roots e hoje não passa de música pop de baixíssima qualidade, o lixo cultural chamado reggaeton (que felizmente é inexpressivo no Brasil). A rebeldia inerente do rock morreu em Altamont, ressuscitou anos depois em sua forma mais digna de combate, o punk, morreu novamente nos sombrios anos 80, teve sua terceira encarnação no início dos anos 90 com o grunge, mas logo se foi novamente. Desde então os rebeldes, reduzidos a fileiras dignas de guerra de guerrilha, diferente dos exércitos que lotaram os campos dos grandes festivais internacionais, as ruas das cidades brasileiras no início da oposição contra a ditadura militar ou os guetos sujos da Inglaterra tatcheriana, lutam num silêncio simbólico, sem um movimento musical que os represente dignamente. Entretanto, dada a capacidade do rock de voltar dos mortos quando menos se espera, quem sabe ele não nos surpreende em breve? As multidões que estão voltando a reivindicar seus direitos pelo mundo afora merecem.

Editora: Civilização Brasileira
Páginas: 531
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Vinte Mil Léguas Submarinas - Júlio Verne

Já escrevi sobre Júlio Verne aqui no blog nas resenhas de Cinco Semanas em um Balão e Atribulições de um Chinês na China, e nelas pude traçar tudo o que me chamou atenção sobre as características de sua obra. O fato é que, acima de tudo o que coloquei nas resenhas anteriores, o que mais me encanta nas histórias criadas por esse francês à frente de seu tempo, acima de seu dom visionário e sua percepção de mundo avançada para a época, acima de seu pioneirismo na ficção científica, é puramente o desenvolvimento de algumas das maiores aventuras já criadas. De todos os modos possíveis e impossíveis na sua época, os personagens de Verne atenderam ao chamado da aventura, penetrando no centro do planeta ou voando até a lua, de balão sobre a África ou nos trilhos das ferrovias mais modernas do século XIX, mas talvez a mais famosa jornada imaginada por Verne tenha sido a do submarino Nautilus em Vinte Mil Léguas Submarinas.

Uma das histórias mais famosas não só de Verne, mas de toda a literatura, a aventura das Vinte Mil Léguas é contada pelo professor Aronnax, um naturalista que vai atrás de um monstro destruidor de navios nos oceanos e acaba descobrindo o Nautilus, um super submarino movido a eletricidade (ficção científica na época) que pode percorrer todo o planeta voltando à superfície apenas ocasionalmente para renovar o ar interior. O Capitão Nemo, inventor e proprietário da engenhoca, decidiu abandonar quase todo contato com a humanidade, por razões tão obscuras quanto sua origem e seus propósitos. Nessa jornada quase toda a muitos pés de profundidade, o professor Aronnax, acompanhado de seu criado Conseil e do arpoador canadense Ned Land, tem a oportunidade de estudar a natureza de uma perspectiva que nenhum cientista de sua geração poderia.

Devo admitir que Vinte Mil Léguas Submarinas não é uma leitura fácil. Não que exija uma formação intelectual muito sólida do leitor para que se entenda a história, mas o excesso de minuciosidades científicas é bastante cansativo, ainda mais por se tratar de alguns conceitos e tecnologias obsoletos há mais de um século. São descrições de como determinada máquina funciona, a preocupação com a exatidão de determinadas latitudes e longitudes, e principalmente a obsessão que Aronnax e seu discípulo têm com a taxonomia. O leitor que quiser conhecer a aventura submarina definitiva vai se deparar com páginas e mais páginas com organizações de seres vivos em filos, ordens, famílias, classes, gêneros...

Contudo, o contratempo desse preciosismo exacerbado não descredencia as Vinte Mil Léguas Submarinas do posto de livro que tem que ser lido, mesmo porque em pouco tempo se aprende a saltar esses parágrafos desnecessários para nossa leitura contemporânea. Você deve ler esse livro, nem que seja para dizer que não gostou, por todos os motivos que eu já escrevi sobre Júlio Verne, pela importância dessa história na cultura mundial, pelas emoções que a aventura gera na gente (e para imaginar as emoções que as pessoas sentiram ao ler isso no século retrasado), pelo suspense e a expectativa de como a expedição vai ser concluída, pelos personagens tão cativantes que Verne criava, mas principalmente, pelo Capitão Nemo. Esse é um dos personagens mais cativantes e enigmáticos já criados na literatura de ficção e fantasia, e o que ajuda ainda mais nesse status são seus atos imprevisíveis e até contraditórios, que nos faz não saber se o amamos ou odiamos.

A prova da importância e do sucesso das Vinte Mil Léguas Submarinas é a quantidade de edições que podem ser encontradas no mercado. Existem adaptações para literatura infantil, histórias em quadrinhos, edições comentadas e um monte de traduções diferentes. A minha é um volume de uma coleção que está sendo relançada quinzenalmente nas bancas, da editora espanhola RBA. Com capa dura e as ilustrações originais, pode até se apresentar como uma edição caprichada, mas na verdade é uma coleção lançada em Portugal, com um vocabulário às vezes estranho ao nosso aqui do Brasil, e além disso tem bastante erro de digitação. A impressão é que o que está sendo vendido aqui é o que sobrou do mercado de lá das terras lusas. A edição que me pareceu mais adequada é a da editora Zahar, a qual a capa ilustra a postagem.

Editora: várias
Páginas: cerca de 500
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Commando - A Autobiografia de Johnny Ramone

Bruto, direto, tosco, sem frescura... assim podemos caracterizar o som dos Ramones, e após ler Commando, a Autobiografia de Johnny Ramone, podemos compreender melhor que essa sonoridade nada mais é que o reflexo de seu criador, o lendário guitarrista dos pais fundadores do punk rock. Lançada aqui no Brasil oito anos após a morte de Johnny, essa autobiografia sem concessões não é a história definitiva dos Ramones, mas nos mostra a ótica de quem era o cérebro da banda, o cara que, além da importância nas composições e na criação do espírito Ramone, realmente mandava e decidia questões estratégicas - uma ótica bem peculiar à sua pessoa.

Johnny Ramone era um cara difícil, cheio de escrotices, opiniões babacas, atitudes estúpidas, e talvez por isso nunca tenha sido o membro dos Ramones que eu mais admirava. Enquanto para mim Dee Dee Ramone encarnava a atitude punk por excelência e Joey era muito mais cativante na sua tosquice em volta de uma personalidade inocente, boba, imbecilizada, Johnny Ramone me causava uma certa antipatia por, ao meu ver, não personificar o espírito punk com sua visão muito empresarial e suas posições conservadoras em diversos assuntos. Mas nunca perdi meu respeito por ele, primeiro por ser um membro fundador da minha banda favorita desde que minha voz começou a engrossar, e segundo por ser um cara que colecionou uma legião de detratores, mas ao mesmo tempo um círculo grande de admiradores e amigos no mundo da música - e isso o torna, mesmo que discutamos suas atitudes e valores, uma pessoa bem interessante.

Todas essas características da personalidade de Johnny que eu não simpatizo estão nas páginas do livro, o que prova que um de seus traços que eu valorizo está lá: mesmo que obviamente seja cheia de omissões, é uma autobiografia sincera. Escrito nos últimos momentos de vida de Johnny, quando lutava contra o câncer que o vitimou, Commando é como uma música dos Ramones: rápido, honesto, conciso, e nos faz entender muito sobre os Ramones e algumas de suas canções. Talvez até pelas circunstâncias em que foi escrito, o livro não apresente pudores de seu autor em falar o que pensa sobre ninguém. Entretanto, Johnny não era escritor, e infelizmente no livro ele não consegue fazer como nas músicas da banda, aquela simplicidade arrebatadora que dizia tudo em poucas palavras com três acordes simples ao fundo. É apenas um texto ordinário, retirado de entrevistas cedidas pelo guitarrista e organizado por outras pessoas, mesmo que tenha passado pela edição de gente como John Cafiero e Henry Rollins, mas o livro é tão curtinho e as histórias são tão interessantes que isso não significa muito. A edição brasileira é muito bem cuidada, capa dura, papel de luxo, muitas fotos e vários anexos, como listas de 10 mais de Johnny, cópias de agendas, avaliações dele sobre os discos dos Ramones, até para encher o livro já que o texto é bem pequeno.

Como fã dos Ramones, conheço muita coisa sobre eles, e essa autobiografia elucida muitas passagens da história da banda, mas também contradiz bastante algumas versões. Commando é uma leitura bacana, leve e rápida, que vale uma conferida. Quer você curta ou não, os Ramones são uma das bandas mais importantes da história do rock, e este livro é um dos buracos de fechadura para observar o que passou nesse mundo que tanta gente é apaixonada. Se você se interessa por isso,vale a leitura, mesmo que seja numa cafeteria de livraria no intervalo do almoço.

Editora: Leya
Páginas: 176
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Suave é a Noite - F. Scott Fitzgerald

A popularidade dos livros de Francis Scott Fitzgerald tem aumentado nos últimos anos, graças a grandes produções de Hollywood  como O Curioso Caso de Benjamin Button e O Grande Gatsby, e novas edições estão sendo lançadas a cada estreia no cinema. Com roteiros baseados na obra de um dos maiores escritores de todos os tempos, seria bem difícil que um filme desse tipo não vingasse - pelo menos o que vi, O Curioso Caso..., é excelente. Quanto ao lançamento de novas edições, é uma oportunidade para o público médio conhecer livros que realmente importam, já que, impulsionados pelo sucesso dos filmes, essas novas edições ganham uma exposição privilegiada nos centros das livrarias ao lado de best-sellers consumidos por esse público voraz por coisas como 50 Tons de Cinza ou a última canastrice do Dan Brown. Esse ano O Grande Gatsby ganhou até uma bela edição bilíngue de capa dura pela editora Landmark, minha chance de reler esse livro tão importante para mim, agora na língua original (e com a molezinha da tradução logo ao lado).

Com a maior exposição dos livros de Fitzgerald nas livrarias, muitos que comprarem no oba-oba do filme podem gostar, não gostar, ou sequer um dia vão ler, mas alguns terão nesses lançamentos uma porta de entrada para o restante da obra desse mestre. O livro de Fitzgerald sobre o qual resolvi escrever é um desses livros que não tem tanta repercussão na carreira de um escritor em meio ao eclipse que um Grande Gatsby pode causar na literatura (a não ser que venha a ser filmado com o DiCaprio), mas nem por isso deixam de ser arrasadores. Suave é a Noite já começa a ser um grande livro desde antes de ser aberto pelo leitor, pois só o título já pode despertar vários tipos de sentimentos - aqueles que escolhem essa hora suave para ler ou fazer qualquer outra coisa vão entender ainda mais essa beleza de título. 

Depois dessa primeira impressão, uma capa com um título desse e o nome de um autor peso pesado, Suave é a Noite tem diversos outros motivos para ser considerado um grande livro. Um dos últimos trabalhos de Fitzgerald, este livro mantém a mesma qualidade narrativa dos anteriores, mas se diferencia de todos os outros por trazer uma maior carga autobiográfica, e talvez por isso o que ele considerava sua melhor criação. À época da produção do livro (que foi lançado em 1934), Zelda Fitzgerald, sua esposa, havia sido internada em uma clínica com diagnóstico de esquizofrenia, após anos de uma violenta relação entre os dois. Scott Fitzgerald havia perdido o pai em 1931 e mantinha um hábito que trazia desde sua juventude: bebia muito acima do padrão considerado "social". Durante sua internação, Zelda escreveu Save me the Waltz (sem tradução para o português), um livro mal recebido e cheio de passagens autobiográficas sobre a vida do casal. Essa publicação de sua vida pessoal enfureceu Scott Fitzgerald, e talvez por isso ele tenha dado uma resposta colocando seu ponto de vista sobre essa relação doentia em Suave é a Noite.

O livro começou a ser desenvolvido logo após o lançamento de Gatsby, porém com uma temática bem diferente. Com os contornos dramáticos que dominavam a vida de Fitzgerald, o enredo foi modificado, utilizando-se as passagens já escritas e os personagens numa nova perspectiva. A história se passa em torno de Dick e Nicole Diver (as representações de Scott e Zelda), um casal americano endinheirado e hedonista vivendo na costa sul da França, em meio e festas e eventos sociais com amigos. Sua situação é cômoda, eles são admirados como um casal perfeito numa vida perfeita, até que começam a aparecer evidências de uma situação explosiva guardada num lugar onde o mundo não pode ver. Esse tema da relação doentia entre duas pessoas é abordado em todo o livro, utilizando-se flashbacks paralelos ao desenvolvimento dos acontecimentos entre Dick e Nicole. Fitzgerald coloca tudo o que lhe fazia sofrer em sua vida nas páginas do livro: seu relacionamento frustrado, seu alcoolismo, sua degradação, a morte de seu pai, os problemas mentais de Zelda.

Geralmente é recomendado que o leitor tenha o primeiro contato com um trabalho mais famoso de determinado autor, mas se alguém ler Suave é a Noite como iniciação a F. Scott Fitzgerald não vai se arrepender. E quem já o conhece por Gatsby ou Benjamin Button e está doido para continuar a explorar esse universo tenso e encantador, esse é o caminho. Um livro estupendo, de construção e desenvolvimento de enredo e beleza que não é qualquer um que consegue, mas não é uma beleza para levantar o astral de ninguém: é uma beleza como a suavidade da noite, que às vezes pode ser melancólica, solitária e triste, bem triste.

Editora: Bestbolso 
Páginas: 448
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

Só para constar: Suave é a Noite já foi filmado em 1962...

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Collected Poems 1947-1997 - Allen Ginsberg

Como dito anteriormente aqui no blog, a poesia é um ramo de leitura recente para mim. Não me interessou em grande parte da minha vida simplesmente porque eu não conhecia poesia - quer dizer, poesia de qualidade. Achava ridículo aquele tipo de poema todo rimadinho - e ainda acho -, sem graça, preso em seus próprios códigos de conduta, até que comecei a descobrir que a poesia poderia ser tão radical e revolucionária quanto uma prosa solta de um Henry Miller, e vai muito além de coisas medíocres como o parnasianismo que a gente aprende na escola.

Allen Ginsberg chegou a mim através de meu interesse pela prosa beat. Pesquisando sobre os autores pelos quais me interesso, descobri ali no meio deles esse poeta que me surpreendeu e me tomou coração e mente de assalto. Ginsberg é um dos maiores poetas da língua inglesa de todos os tempos. Inspirado em gente importante como William Blake e Walt Whitman, mas sem que isso interferisse em sua originalidade, Ginsberg iniciou sua carreira nos anos quarenta, formando o núcleo do que seria a geração beat, ao lado de outros importantes escritores como seu amigo Jack Kerouac.

Assim como meus autores prediletos de prosa, Ginsberg representa para mim muito mais do que um autor importante pela sua técnica: ele diz o que eu quero ouvir, escreve o que eu estava esperando ler, o que eu precisava conhecer antes de morrer. Eu não tenho interesse em saber se Vinícius de Morais tem medo de amar (e pior ainda se ele faz isso em versinhos rimados...). Me fascina muito mais um cara que viu as melhores mentes de sua geração "destruídas pela loucura, famintas, nuas", como contou Allen Ginsberg. Presente em um dos momentos mais importantes e apaixonantes da história de literatura (e da humanidade em geral), Ginsberg viu, viveu e escreveu um mundo de sexo, amor, drogas e lutas políticas como poucos. Sua poesia é excelente por si só, mas uma pesquisa paralela sobre sua biografia é essencial para essa experiência de leitura.

Collected Poems 1947-1997 abarca toda a obra poética de Allen Ginsberg, em ordem cronológica. Um livro monumental, com mil e tantas páginas, passando por todas as sua fases, várias leituras e releituras para a vida. Existem diversas traduções de Ginsberg para o português, mas nenhum trabalho como esse, completo, e além do mais, se prosa já é uma coisa meio complicada de se ter traduzida, poesia é para mim inconcebível, perde-se completamente o sentido - é claro que, se quisermos conhecer a fundo a poesia do mundo, dependeremos uma hora ou outra de uma tradução, não vou aprender russo só para conhecer Maiakovski -, mas para autores em inglês ou espanhol que são línguas comuns para nós, vale o esforço da interpretação pessoal no original.

Editora: Harper Perennial
Páginas: 1191
Disponibilidade: importado
Avaliação: * * * * *

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A Trilogia Nikopol - Enki Bilal

Nos anos 70, enquanto os quadrinhos norte-americanos de super-heróis passavam por uma ressaca criativa depois da década anterior de criações de sucesso - Homem-Aranha, Quarteto Fantástico, etc. - na Europa se desenvolvia um estilo de quadrinhos de temática adulta, sofisticado, encabeçado pela revista francesa Métal Hurlant (que inspirou a criação posterior da Heavy Metal americana). Enredos de ficção científica e fantasia, acompanhados de uma arte sombria, cheia de imagens de seres bizarros com bastante violência e sexo, apresentavam ao mundo uma nova maneira de fazer quadrinhos. Uma safra de artistas talentosos surgia, dentre eles o franco-iugoslavo Enki Bilal.

Na onda recente de excelentes lançamentos da Editora Nemo, A Trilogia Nikopol é uma bela oportunidade para se entrar em contato com o trabalho de Enki Bilal e os quadrinhos europeus dessa vertente. Com um enredo de ficção científica cyberpunk, misturando viagens espaciais, deuses egípcios, robôs, animais humanizados e tramas políticas influenciadas pelo contexto da guerra fria, a história se passa entre 2023 e 2034, iniciando-se em uma Paris comandada por fascistas com uma pirâmide voadora pairando sobre a cidade em busca de combustível, enquanto uma nave de menor porte cai do espaço com Alcide Nikopol, de volta à Terra depois de décadas de exílio congelado - e após terminada a quarta guerra mundial (nuclear, diga-se de passagem). Essa é a premissa para A Feira dos Imortais (1980), o primeiro volume da trilogia, completada por A Mulher Armadilha (1986) e Frio Equador (1992).

Como se não fosse já bastante complicado esse cenário, o roteiro da Trilogia Nikopol é bem confuso, cheio de pontas soltas e passagens passíveis de interpretações. Não sei se o ato foi proposital ou se essa é realmente uma deficiência do autor, mas o resultado surpreende - tal falta de ordem causa um resultado positivo, cai bem para o clima caótico e surreal do futuro degradante imaginado por Enki Bilal - e algumas passagens são complementadas por trechos jornalísticos imaginados. Os desenhos e cores são excelentes, bem característicos do que é a arte desse estilo de quadrinhos.

Soma-se ao brilhantismo do trabalho de Enki Bilal a excelente edição lançada aqui no ano passado pela Editora Nemo, que vem cumprindo um excelente trabalho no mundo dos quadrinhos (apesar dos preços um pouco indigestos de algumas obras). Em formato grande, papel couché, capa dura e até uma edição fictícia de jornal acompanhando o álbum, a edição da Trilogia Nikopol é um deleite para os fãs brasileiros de quadrinhos, e fica a recomendação para aqueles que ainda não tiveram contato com esse tipo de livro por preconceito ou simplesmente desinteresse.

Editora: Nemo
Páginas: 184
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

*Agradecimento especial ao amigo Marcelo, por ter me apresentado a este fantástico autor - uma parte que eu desconhecia de um mundo que lhe foi apresentado por mim. Espero que a troca de nossas diferentes culturas continue honesta e gentil, como você citou em sua dedicatória, até ficarmos senis de tanto ler fantasia.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

V. - Thomas Pynchon

Em Malta durante a Segunda Guerra Mundial, no Sudoeste Africano Alemão durante o colonialismo, nos esgotos de Nova Iorque da década de 1950, nos palcos da Paris do início do século XX, no Egito dominado por britânicos, numa trama na Florença da virada do século... lá está V... Misterioso, complexo e estranho pra cacete, este livro me despertou sensações tão variadas quanto a diversidade de locais nos quais se passa e personagens que se apresentam para depois não mais aparecerem e, aparentemente, não fazerem sentido algum para o resto da história.

Não que V. seja um daqueles livros que você não entende nada, com pouca trama e muito sentimento. Há bastante enredo no roteiro que varia entre todos os lugares citados acima e uma linha mais clara passada em Nova Iorque em 1956, centrada em dois personagens. Há um sentido e uma ligação entre esses capítulos e os outros, que mais parecem contos isolados, só que eu não sou capaz de explicar como (e até onde sei, todo mundo que lê esse livro sente o mesmo)!

Os dois personagens centrais são Benny Profane, um vagabundo sem direção na vida cuja única preocupação é curtir tudo o que puder acompanhado de seu grupo de amigos batizados como a turma muito doida, e Stencil, um homem que segue a investigação de seu pai à procura de V. O problema é que nem ele sabe o que é V - e nem você vai saber ao terminar a leitura, vai no máximo desconfiar ou presumir o que é. Portanto, como não se pode dizer ao certo o que é V, também não se é capaz de afirmar sobre o que trata esse livro, mas nem por isso a leitura perde sua validade - pelo contrário, o livro teve boa aceitação pela crítica na época e concorreu a prêmios. 

Como eu escrevi no início do texto, V. me proporcionou uma variedade de sensações. Quem acompanha o blog já está ciente de minha clara predileção por autores de meados do século passado, gente que viva e escrevia ao som do jazz e à sombra de cogumelos atômicos compreensivelmente imaginários. Busquei um livro de Thomas Pynchon por ter lido resenhas e artigos bastantes elogiáveis sobre ele, já sabia que era um autor da minha área de interesse. Tanto o estilo sem o formalismo da literatura clássica como os temas abordados me prenderam bastante na leitura, mas algumas partes desse extenso livro podem ser maçantes, sobretudo quando se tem a impressão que nada mais faz sentido, quanto você se pergunta por que o autor está lá na Namíbia no meio da guerra de alemães com os Herero, ou o que uma série de nomes como Venezuela, Vesúvio, Verônica ou Vênus podem ter a ver com V... e não garanto a você que há respostas para essas e outras questões levantadas, ou que magicamente tudo vai fazer sentido quando você chegar na última página, como num conto de Borges. Se você tem interesse e vontade de ler esse livro, minha recomendação é: leia com o compromisso da leitura de um livro difícil, complexo, mas sem a preocupação com uma linha condutora; leia a trama de Nova Iorque de forma encadeada, mas cada capítulo fora dela como se fossem contos independentes, sem se importar em fazer sentido (já que boa parte não vai fazer mesmo!).

V. foi uma leitura estranha por esses motivos, de altos e baixos, mas que eu pretendo repetir futuramente, o que me mostra alguma coisa a mais que conta sobre os baixos, que me faz sentir a necessidade de uma nova leitura e que nessa ocasião será mais bem aproveitada que a primeira. V. é o primeiro livro de Thomas Pynchon, um autor que vive até hoje recluso, com poucas concessões à mídia, e que por isso já gerou inúmeros rumores sobre sua personalidade e real identidade (alguns realmente toscos, como a suspeita de que ele era na verdade o Unabomber...). Durante décadas, só se conhecia uma foto sua, de quando ele tinha 18 anos, mas hoje já se sabe um pouco mais mais sobre ele. Seus outros livros de destaque são O Leilão do Lote 49, considerado mais fácil que os outros e uma porta de entrada para sua obra, e O Arco-Íris da Gravidade, sua novela de maior sucesso. Pynchon ainda vive e lança livros esporadicamente, porém sem a repercussão dos anteriores. Infelizmente, as edições brasileiras de seus livros são geralmente caras e algumas estão esgotadas, mas podem ser encontradas baratas em sebos.

Editora: Paz e Terra
Páginas: 559
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * *

sábado, 31 de agosto de 2013

Toda Poesia - Paulo Leminski

Um livro que reúne toda a poesia de Paulo Leminski, como o nome já diz, é garantia de que o leitor vai se deparar com alguns dos melhores versos já compostos no mundo das letras brasileiras. Como em toda a obra de qualquer escritor, a poesia de Leminski pode não ser uma obra-prima como um todo - há poemas medianos -, mas como aqui está toda sua obra poética, estão presentes também as criações mais fantásticas desse gênio do bom humor poetizado. Paulo Leminski abusava de irreverência em seu trabalho, sendo por si só já uma figura bem singular: nasceu em Curitiba, filho de um polonês com uma brasileira negra. Usava longos bigodes, era faixa preta em judô e conhecia bem a cultura e o idioma do Japão. Some-se a todas essas peculiaridades o fato de Leminski ser um representante da poesia de um país que já foi representado por Drummond e Mário de Andrade, e temos como resultado algo como:


Merda e Ouro

Merda é veneno.
No entanto, não há nada
que seja mais bonito 
que uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam padres
cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare 
à bosta da pessoa amada.
-------------------------------------------------------------------

arte do chá

ainda ontem
convidei um amigo
pra ficar em silêncio
comigo

ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo

----------------------------------------

Se incluirmos a mistureba cultural da bagagem de Leminski, temos os haikai, modo japonês de se produzir poemas que utiliza as palavras minimamente de forma singela e direta, como:

a palmeira estremece
palmas para ela
que ela merece

ou

casa com cachorro brabo
meu anjo da guarda 
abana o rabo

ou dessa forma, impossível de ser mais abrasileirado:

Manchete

CHUTES DO POETA
NÃO LEVAM PERIGO À META


Disposta em ordem cronológica, Toda Poesia de Leminski nos apresenta um poeta que começa com um trabalho regular, o até então pouco divulgado Quarenta Clicks em Curitiba, que na época de seu lançamento (1976) era uma edição com fotos de Jack Pires. Na presente edição, as fotos foram omitidas, já que todos os poemas foram criados anteriormente, de forma independente. Em seguida, tomando praticamente a metade do livro, estão os melhores poemas de Leminski, sua produção de meados da década de 1980, que inclui os soberbos Caprichos & Relaxos e Distraídos Venceremos, deliciosos desde a escolha do nome. O restante do livro é composto pelo lançamentos póstumos e poemas esparsos, que se não são o melhor da obra de Leminski, ainda apresentam pérolas memoráveis do poeta, como: 

erra uma vez

nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez

Além de estar presente toda a obra poética de um dos maiores nomes da poesia nacional, a edição de Toda Poesia é bastante satisfatória, tendo em vista os objetivos da editora em cortar o máximo de custos para reduzir o preço. A maior parte das fotos e ilustrações que constavam nos livros originais foi cortada, sendo incluídas somente as que se tornavam imprescindíveis aos poemas, mas há diversos textos que haviam sido incluídos em introduções ou comentários nas edições originais, entre estes os de Haroldo de Campos, Caetano Veloso e Alice Ruiz, companheira de vida do poeta e organizadora desta bela compilação.

Toda Poesia de Paulo Leminski foi lançado esse ano, e de forma surpreendente já vendeu muito mais do que o esperado - já está à venda até em bancas de jornais. Ouvi comentários de que isso é um fato inesperado, e há vários motivos para o espanto: porque poesia não vende, porque Leminski já morreu há tanto tempo, porque não era um poeta do eixo Rio-São Paulo... Para mim, tudo não passa de uma lenga-lenga intelectual desnecessária, e só demonstra a incapacidade do mercado editorial brasileiro em se adaptar à realidade que passamos, com todas as mudanças tecnológicas que trazem consigo mudanças de comportamento.

Confesso que a poesia é um ramo de leitura novo para mim, se comparado ao meu contato mais forte com a prosa - coisa de alguns anos pra cá. Desde então, Leminski tem sido um dos principais companheiros nessa jornada, e há bastante tempo eu esperava uma edição dessa, mas enquanto ela não havia sido lançada, eu curtia muito os poemas nesse blog que é bem legal. Se você não conhece Leminski, entre e se farte com o que há de melhor na poesia brasileira. Se você conhece e ainda não tem Toda Poesia, o que você está esperando para ter essa beleza na sua cabeceira?

Editora: Companhia das Letras
Páginas: 421
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

domingo, 25 de agosto de 2013

Eu Sou Ozzy - Ozzy Osbourne

O que esperar de uma autobiografia de alguém que usou tantas drogas que não consegue se lembrar de metade do que passou na vida? A resposta evidente é a metade de uma autobiografia misturada com um monte de histórias bobas fantasiadas ou, no máximo, "aumentadas mas não inventadas". É mais ou menos por aí que deve ser encarado esse Eu Sou Ozzy, escrito pelo comediante Ozzy Osbourne. 

Quer dizer, "escrito" é um eufemismo elogioso para, no máximo, narrado oralmente, pois pelo que se conhece de Ozzy e pelo que ele mesmo diz no livro, dificilmente ele teria capacidade para redigir um texto com mais de três parágrafos sozinho. O ghost writer encarregado em passar para o papel as histórias escabrosas de Ozzy chama-se Chris Ayres, e ele tenta ao máximo reproduzir a linguagem chula e primária do vocalista do Black Sabbath para dar um ar de autenticidade à narrativa do ídolo metaleiro. Se isso por um lado isso produz um texto tosco e difícil de ser levado a sério, a contrapartida positiva é que a leitura torna-se bastante fácil e rápida. Afinal, o que sobra mesmo são as histórias engraçadas e passagens curiosas para quem gosta de rock.

Desde o começo já se percebe que a piada é o tom do livro. Antes de ser cantor, Ozzy é um showman, um palhaço, um bobalhão. Tudo quanto é passagem de sua vida é narrada como uma comédia pastelão, até as coisas mais sérias, como seus dias na prisão, doenças, acidentes, excessos de drogas - aliás, justamente por isso a mídia teve a ideia de transformar sua vida familiar num reality show. Da sua infância humilde, passando por sua juventude sem perspectivas na classe trabalhadora inglesa, chega-se logo ao que todos querem saber: sua carreira no Black Sabbath e as doideiras do mundo do rock.

É claro que tudo não passa de histórias inventadas, floreadas, enfeitadas com glamour de bom humor, mas nem por o livro deixa de apresentar bons aspectos. Primeiro que é bem engraçado, dá para se divertir um bocado com algumas dessas histórias bobas. E segundo que, apesar de toda a fantasia e o besteirol, Ozzy não esconde quem realmente é como pessoa, intencionalmente ou não. Independente das cores com que trata suas histórias, fica claro que Ozzy é um completo idiota que age de maneira semelhante a qualquer Luciano Huck ou Ivete Sangalo da vida: só quer saber de ganhar dinheiro e gastar da maneira que mais lhe agradar, o que eu encaro como uma grande ofensa ao rock, um estilo musical que tem a rebeldia como substância desde seus primórdios. Tanto é que, lamentavelmente, Ozzy prefere falar mais sobre seus discos de platina e suas turnês milionárias do que de suas composições em si - quer dizer, das composições de seus parceiros musicais que ele interpretava, pois ele deixa bem claro que o processo de composição do Black Sabbath passava primordialmente por Tony Iommi e Geezer Butler. Fora tudo isso, ainda tem espaço para todas as besteiras inconsequentes que sempre marcaram a vida de Ozzy, como a crueldade com animais (e não estou falando só da lenda do morcego, que por sinal ele dá sua versão também).

Eu sou Ozzy é um apanhado de babaquices, ora engraçadas, ora de mau gosto. Não se justifica como um livro, pela sua falta de qualidade literária. Seu conteúdo seria mais indicado para um documentário ou um programa de tv, mas esse tipo de livro está aí nas livrarias porque tem mercado, pessoas que não têm o costume de ler, como as que compram A Cabana ou os livros do padre Marcelo - ou no caso, os fãs de Ozzy, subestimados ou não.  As histórias do mundo do rock sempre me interessam, e confesso que curti as passagens em que Ozzy nos conta sobre a genialidade de Tony Iommi, a morte de Randy Rhoads ou a ditadura de Ian Anderson no Jethro Tull, mas logo torci para que terminasse e eu voltasse para o mundo dos livros de verdade, que é o que realmente me interessa. 

Editora: Benvirá
Páginas: 416
Disponibilidade: normal
Avaliação: * *

domingo, 11 de agosto de 2013

O Livro de Areia - Jorge Luís Borges

Depois que li Ficções de Borges, que automaticamente virou um dos três livros supremos da minha vida, me surgiu um, digamos, dilema literário em relação ao lendário autor argentino: vontade de ler outros de seus trabalhos para conhecê-lo mais detalhadamente, mas ao mesmo tempo vontade de não ler e continuar relendo sua obra-prima por tê-la como definitiva para mim. Talvez por isso tenha demorado cinco anos e muitas releituras de Ficções para que eu pegasse O Livro de Areia para ler.

Fica óbvio que, comparado a Ficções, nenhum outro livro menor da bibliografia de Borges pode ter uma resenha e uma avaliação tão entusiástica como a anterior. O Livro de Areia é composto por 13 contos (o último deles dando nome ao livro), nenhum deles com a genialidade da lógica e dos estratagemas observados em Ficções. Entretanto, isso não tira a qualidade da escrita de Borges - mesmo sem ter as mesmas ideias geniais de antes, o autor não poderia esquecer como escrever bem, apesar de passadas três décadas. Vale lembrar que em Ficções (1944), Borges estava no auge de sua carreira de escritor, enquanto que em O Livro de Areia, escrito 31 anos depois, já estava no final de sua vida, praticamente cego, tendo ditado todos os contos. Se faltam as ideias e a originalidade de outrora, uma das características mais marcantes dos contos borgianos ainda pode ser percebida nesse livro: o ritmo, que prende o leitor do início ao fim de cada conto. Isso por si só, dadas as condições físicas e materiais adversas, faz de Borges um herói da literatura mundial - afinal, não é para qualquer um escrever o que quer que seja de qualidade sem poder enxergar o produto, reler, apagar, corrigir, reescrever, pelo menos eu penso assim.

O Livro de Areia apresenta uma certa coerência / referência entre os contos nele presentes e também com outros trabalhos anteriores. Algumas referências são citações repetidas em vários contos, notoriamente o xadrez e o mundo anglossaxônico, outras são temas sempre abordados em toda a trajetória de Borges, como por exemplo a questão da infinitude e a reavaliação de personagens históricos, além de aspectos de sua vida pessoal e de contos anteriores. Dois dos contos desse livro (Undr e O Espelho e a Máscara) são um contraponto perfeito para A Biblioteca de Babel, para mim a melhor história criada por Borges. E há também temas pouco explorados por Borges anteriormente: um conto de terror (There Are More Things) e um sobre o amor (Ulrica) que, segundo o próprio autor, é comum em sua obra poética, mas inédito na sua prosa.

Não importa se O Livro de Areia não se compara a Ficções: Borges é Borges, e independente de sua idade ou saúde sempre vai ter algo saboroso para servir seus fiéis leitores. Esse é o termo certo para O Livro de Areia: uma leitura gostosa. O próximo que me aguarda é O Aleph, o segundo de seus maravilhosos livros de contos, hierarquicamente falando.

Editora: Companhia das Letras
Páginas: 112
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Black Flag - Valerio Evangelisti

No presente, militares americanos internados em um laboratório subterrâneo durante a invasão do Panamá encontram a oportunidade para fugir; no passado, um grupo de párias liderado por um pistoleiro mexicano luta numa missão de êxito improvável durante a Guerra de Secessão; no futuro, uma garota tenta sobreviver num mundo mergulhado em caos e doença mental generalizada entre a sociedade. Como elo de ligação, uma das maiores maldições da história da ficção repensada de maneira original. 

Ok, confesso que tal premissa mostrou-se muito menos chamativa para mim do que o título, referindo-se a uma de minhas bandas punk prediletas. As citações das letras intensas e agressivas do Black Flag no início de cada capítulo que li ao folhear o livro numa feirinha de rua também determinaram bastante a compra e a leitura desse primeiro trabalho de Valerio Evangelisti publicado no Brasil, tido como um dos principais nomes da literatura fantástica da atualidade, mas por enquanto ainda pouco falado por aqui.

Apesar de o livro não seguir as letras como base para o roteiro, elas caem bem no clima deprimente, violento e holocáustico que permeiam as três gerações de ********** separadas pelo tempo, mas unidas por sua maldição. O italiano Evangelisti consegue imprimir um bom ritmo na história, variando os três momentos sem ordem fixa e em quantidades desiguais (a maior parte do livro ocorre no passado, mais ou menos no futuro e quase nada no presente), mas nada que o justifique como um "grande nome da atualidade" como querem alguns.

Black Flag é um livro bacana, um passatempo rápido para se divertir no caminho para o trabalho ou num fim de semana sem sol no qual nenhum amigo está disponível para uma cerveja (quer dizer, na verdade, Black Flag é uma banda punk muito foda que você deve conhecer, e se este livro for o caminho para tanto, já cumpriu 80% de sua função).

Editora: Conrad
Páginas: 239
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *


p.s: a capa não tem nada a ver com a história do livro, não sei por que escolheram essa imagem...

p.s.2: Lançaram um novo Assassin`s Creed que tem como subtítulo "Black Flag", e agora quando eu busco alguma coisa da banda fica aparecendo esse jogo, que saco!

terça-feira, 30 de julho de 2013

Lisboa 1939-1945 - Guerra nas Sombras - Neill Lochery

A Segunda Guerra Mundial é provavelmente o tema mais abordado pela história, e consequentemente há uma imensa disponibilidade de títulos sobre seus episódios e personagens nas livrarias. É compreensível: foi travada diretamente pelas principais potências do mundo, praticamente todos os países tiveram uma participação mais intensa do que na Primeira Guerra Mundial (inclusive o Brasil) e determinou os rumos do que se seguiu nas décadas seguintes. Soma-se a isso o fascínio exercido pelas personalidades envolvidas e o inevitável maniqueísmo produzido pelos meios de comunicação, a luta do bem contra o mal, o tempero certo para qualquer história emocionante. Quantas biografias de Hitler, Stalin, Churchill ou Roosevelt já não foram editadas? Quantos lançamentos sobre o Dia D, Hiroshima ou a tomada de Berlim que até hoje merecem locais de destaque nas livrarias? Ao que parece um mercado inesgotável, juntam-se livros de temas específicos sobre pessoas ou lugares que não têm espaço nos grandes manuais, entre estes Lisboa 1939-1945 - Guerra nas Sombras, de Neill Lochery. 


É natural que a princípio Portugal, um país neutro durante a guerra, não tenha tanta relevância para justificar muito material a respeito, mas o que Lochery mostra é justamente que bastante coisa ocorreu em terras lusitanas no período marcado no título. Coisas importantes. E baseado nisso pode-se dividir esta investigação em três setores (apesar de não haver essa divisão no livro): a ação dos países beligerantes em solo português, a posição nada neutra de Portugal quanto à defesa de seus interesses políticos e econômico e a saga dos refugiados em sua desesperada fuga da Europa.

Teoricamente, em território neutro não se pode guerrear. Não oficialmente, ou não em modos tradicionais de guerra. Por isso a espionagem foi a arma óbvia utilizada pelos Aliados e o Eixo, e no meio de ambos, a polícia secreta portuguesa fazendo o que podia para defender a soberania nacional. Por outro lado, Salazar tentava desesperadamente manter Portugal oficialmente fora da guerra e, ademais, lucrar ao máximo com esse posicionamento. O ditador sabia que um leve deslize para qualquer lado significaria a ocupação do pequeno país ibérico por aliados ou alemães. E que movimentos sutis significariam a entrada de mais e mais capitais na economia nacional - mesmo que na forma de ouro alemão espoliado dos judeus...

No meio de inúmeras tramas entre espiões, banqueiros, políticos e oportunistas de todos os tipos, as vítimas do mais amplo conflito mundial encontravam  em Lisboa uma ponta de esperança, uma última escala entre o inferno e a nova vida da América, mas até que finalmente conseguissem alcançar seu intento, passariam por diversas provações na capital portuguesa. E não só os mais humildes tiveram Lisboa como seu purgatório ou, mais ainda, seu local de sacrifício derradeiro: até artistas e importantes peças políticas padeceram lá em meio às maquinações da Segunda Guerra.

Por tantas informações surpreendentes, Lisboa 1939-1945 já seria um livro bem interessante para quem gosta de ler sobre história contemporânea, mas a qualidade da escrita do autor e sua pesquisa séria, cheia de fontes e fotos da época, tornam o trabalho lançado aqui no Brasil no ano passado ainda mais tentador.

Editora: Rocco
Páginas: 312
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

p.s: O livro cita diversas vezes o filme Casablanca. Adoro cinema mas confesso que tenho um pouco de pé atrás em relação a esses grandes "clássicos" do cinema norte-americano, mas nesse caso tenho que admitir: é um filmaço, não é um daqueles mitos criados a partir de porcarias hollywoodianas da época. Recomendo também como aditivo ao livro, ou vice-versa.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Revolução no Futuro - Kurt Vonnegut Jr.

Em um futuro próximo, desenvolve-se nos Estados Unidos uma sociedade extremamente automatizada, na qual os cidadãos são divididos de acordo com seu QI: os mais inteligentes desempenham funções administrativas e de comando, enquanto o resto da população se divide em soldados ou trabalhadores braçais. Apesar de ainda haver diferenças sociais, nada de material falta para as pessoas, todos têm tudo o que precisam para viver bem. Contudo, a presença cada vez maior das máquinas no cotidiano tira dos seres humanos sua autonomia, enquanto o governo, que impede qualquer contestação contra esse modelo perfeito, lhe toma a liberdade. 

O parágrafo acima parece um resumo de uma história de ficção científica de meados do século XX, aos moldes de Aldous Huxley, Ray Bradbury e George Orwell. E é. Primeiro livro de Kurt Vonnegut, Revolução no Futuro ainda não mostra a ótima escrita do autor, limitando-se a criar uma versão pessoal dos grandes livros de distopia da época: uma sociedade aparentemente sem contrastes ou falhas, que ao longo do livro vai se mostrando uma quimera, descoberta por um personagem que se rebela e é reprimido por causa disso.

Paul Proteus tem a vida que todo homem gostaria de levar. Ocupa uma posição de prestígio no sistema social que valoriza a inteligência acima de tudo: ocupa um dos cargos mais altos, tem à sua disposição todo tipo de conforto, vive um casamento perfeito. Aos poucos, começa a perceber que aquela harmonia social não passa de aparência, e que, diga o que disser a propaganda oficial, o povo realmente não está feliz. A partir daí já se pode ter uma ideia do que vem pela frente - ainda mais depois da tradução tosca do título original, "Player Piano". E os clichês não param por aí: a população vive em guetos, tem o cara que abre os olhos do protagonista para a realidade escondida e até o computador que controla os rumos dos assuntos da humanidade.

Debutando na literatura, Kurt Vonnegut não é ainda o grande escritor que se notabilizaria nos trabalhos seguintes. Já se nota aí o embrião de algumas de suas melhores características, como a ironia que seria hilária se não fosse tão sutil e a atenção com as características dos personagens, mas olhando retrospectivamente à luz de seus livros mais famosos, tudo parece um treino, ou uma gestação. Há diálogos realmente engraçados e passagens que prendem o leitor, mas, de modo geral, a história não empolga e parece longa demais nas 400 páginas do livro.

Por sua irrelevância, Revolução no Futuro não tem uma versão brasileira desde os anos 70, mas é facilmente encontrado em sebos. Não é o livro certo para começar a ler Vonnegut ou histórias de distopia - pode ter interesse apenas para quem já é viciado em um ou no outro, ou em ambos, unicamente para fins de aprofundamento. Mas nada de julgar Vonnegut por isso! Como eu disse, é um livro inicial, experimental para o desenvolvimento desse ícone da literatura contemporânea. Não é bom, mas também não chega a ser um livro ruim. Está longe de ser memorável, mas o cara que escreveu Matadouro 5 pode ter esse fato ordinário na sua biografia, ele pode.

Editora: Círculo do Livro
Páginas: 402
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * *

quarta-feira, 13 de março de 2013

O Estrangeiro - Albert Camus

"Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: 'Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames'. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem."

A citação de um dos trechos logo do início do livro mostram o que vem pela frente nas páginas de O Estrangeiro, de Albert Camus. Meursalt é um pied-noir (pé negro, em referência aos calçados ocidentais), um franco-argelino que vive como um um homem comum, diria medíocre até, no norte da África colonizada pela França, aparentemente na década de 1930. Tem um emprego burocrático, sem muitas pretensões materiais na vida, busca pequenos prazeres como sair com uma mulher bonita ou fumar um cigarro, mantém relações cordiais e superficiais com pessoas da vizinhança. A diferença dele para os outros homens está em seu modo de sentir as coisas. Mesmo sem refletir sobre isso, Meursalt é uma espécie de niilista. Para ele, não há um sentido profundo em nada, as convenções sociais não lhe dizem nada, Meursalt apenas reage da forma mais natural, como um animal: uma reação imediata aos estímulos sensoriais. O que não faz de Meursalt uma pessoa má. Quando sua mãe morre, eu diria que ele age até racionalmente, como deveríamos nos sentir quando algum idoso morre: todos morrem em algum momento, sua mãe estava idosa, e havia chegado a hora dela. Com essa naturalidade, o protagonista narra esse momento que, para a maioria das pessoas, é difícil demais por causa das lembranças afetivas do ente querido.

O livro é todo narrado em primeira pessoa, e com uma narração seca, limitada ao necessário. A citação inicial nesse texto é um bom exemplo do que Camus queria - o personagem narra os fatos quase como uma pessoa escrevia um telegrama, tentando economizar cada palavra, enquanto Meursalt parece não ver motivos para gastar sentimentos que para ele não existem. Contudo, ao desenrolar o livro, o narrador deixa de ter seus pensamentos limitados exclusivamente pelas experiências sensoriais, e o texto começa a desenvolver uma linguagem mais emotiva, mesmo que seja de revolta, angústia ou incompreensão, mas ainda assim limitando-se ao necessário, sem rodeios, o que produz um livro sucinto, dividido em duas pequenas partes. Na primeira, Meursalt começa sua narrativa seca sobre a morte de sua mãe e seu cotidiano, mostrando-nos suas características psicológicas que definem o livro. Na segunda, o personagem é preso e julgado, com uma certa dose de incompreensão que remete a O Processo, de Franz Kafka. Mas as semelhanças param por aí, pois se no livro do autor tcheco o protagonista é julgado por sabe-se lá o que, aqui o julgamento se dá muito mais por questões morais e julgamentos sociais do que pelo crime cometido (e há um crime concreto, diferente do processo kafkiano). A sociedade julga Meursalt não pelo seu crime, mas por suas ideias e posições. Nada muito diferente do que ocorre hoje e sempre ocorreu nos tribunais - ontem mesmo, no julgamento do assassinato da advogada Mércia Nakashima, todos os jornais mostraram as tentativas do advogado de defesa em desabonar a vítima.

No original, o título de O Estrangeiro pode ter tanto o sentido da tradução para o português como pode significar também estranho. O jogo de sentidos do francês cabe perfeitamente para mim, pois quando leio L'étranger "eu me sinto um estrangeiro", como cantou Humberto Gessinger, mas também me lembro que sempre fui um estranho a este mundo, "um estranho numa terra estranha", como escreveu Robert Heinlein. Tendo sido lido pela primeira vez nos meus vinte e poucos anos, no momento em que eu formava toda a base da minha educação superior, não posso dizer que O Estrangeiro determinou quem eu sou hoje, mas certamente me deixou espantado em como eu me identificava com muito do que sentia (ou não sentia) Meursalt pelo mundo à sua volta, traduzindo um pouco das minhas angústias em ser um estrangeiro/estranho. É e nunca deixará de ser um de meus livros do coração, essas coisinhas tão importantes às quais recorremos ao longo da vida por diversos motivos.

O Estrangeiro está situado nada menos do que na primeira posição da lista dos 100 maiores livros do século XX elaborada pelo jornal Le Monde - tudo bem que é uma lista criada por franceses, recheada de autores franceses, e nunca teria um autor estrangeiro (trocadilho inevitável) acima de um francês nessa lista, mas ainda assim diz algo, não é?

Editora: Best Bolso / Record
Páginas: 112 / 126
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

domingo, 12 de fevereiro de 2012

A Drifting Life - Yoshihiro Tatsumi

O sonho de toda criança é poder ser algo bem divertido e emocionante quando crescer. Eu queria ser jogador de futebol, desenhista ou astronauta, mais tarde astro do rock, e até hoje tenho minhas fantasias profissionais - adoraria trabalhar fazendo programas de viagem para algum canal de tv que pagasse tudo! Poucos de nós podem desfrutar desse prazer que deve ser trabalhar com algo que realmente se sonhou algum dia - sonho inocente de criança, não me refiro a planos para passar em algum concurso público que pague um salário absurdo e morar na orla. Yoshihiro Tatsumi é uma dessas pessoas, e além dessa realização ainda lhe foi possível contar essa história através de um belo livro.

A Drifting Life é um álbum de quadrinhos autobiográfico japonês escrito e desenhado por Tatsumi, um importante autor que criou o termo "gekiga" para distinguir trabalhos mais sérios de mangás de temas infantis - o gekiga em relação ao mangá seria um termo com a mesma conotação que as graphic novels têm em relação aos comics americanos. A história se passa praticamente toda durante a década de 1950, período no qual Hiroshi, o alter-ego do autor, inicia seu amor pelos quadrinhos japoneses e desenvolve sua técnica até se tornar um respeitado artista.

Muito mais que uma autobiografia, A Drifting Life aborda, com muita ternura, a história dos quadrinhos japoneses, além da própria história do Japão. Entre páginas que mostram detalhes da vida pessoal do autor, apresentam-se diversos personagens marcantes para a indústria dos mangás, alguns muito famosos, como seu ídolo Osamu Tezuka (o "Deus do mangá" para os japoneses), outros praticamente desconhecidos aqui no Brasil até para os mais aficionados - editores ou autores underground da época. Ao mesmo tempo é apresentado um Japão que saía do trauma da Segunda Guerra Mundial e iniciava sua ascensão no mundo capitalista como uma nova potência econômica, alguns detalhes também bem estranhos para o público ocidental - ou alguém conhece bem os atletas e cantores japoneses de 60 anos atrás?

O assunto central de A Drifting Life, a criação e o desenvolvimento do gekiga, é mostrado com bastante afinidade com a vida de Hiroshi e a história do Japão, que não aparecem no livro de forma relapsa, sem sentido. Questões de economia do Japão e mercado de mangás tem íntima relação com os trabalhos de Hirsoshi / Tatsumi, bem como seus dramas pessoais e suas preferências. A criação de um "mangá que não é mangá", como o protagonista chama, foi diretamente determinada por uma outra paixão sua que é mostrada quase que em todos os capítulos: o cinema, hábito frequente de Hiroshi que o faz importar esse tipo de linguagem para a arte sequencial japonesa.

Os desenhos vão de simples quadros com dois personagens dialogando sem fundo a painéis mais bem trabalhados. Para as partes históricas, o autor utiliza desenhos até mais realistas, quase representações de fotos de época. Os desenhos do gekiga diferem consideravelmente do mangá regular, sobretudo na falta de artifícios para representar movimentos e nas famosas onomatopeias, utilizadas em menor escala, ainda que existentes.  

Gostei muito de A Drifting Life, mas tenho certas ressalvas em relação à edição da Drawn & Quarterly, até onde sei a única no mercado ocidental. Aqui no Brasil, grande mercado consumidor de quadrinhos japoneses (acho que o maior fora do Japão), estamos acostumados já há mais de dez anos com uma fidelidade à estrutura do mangá. Quase todos os mangás publicados no Brasil mantêm a ordem de leitura japonesa, da direita para a esquerda, mas como os americanos têm fama de resistirem muito à introdução de hábitos de outros povos ou diferenças culturais (isso fica claro no cinema falado em outras línguas), a edição deles foi adaptada para o modo de leitura ocidental, o que, por mais bem feito que seja o trabalho de edição, traz consideráveis prejuízos à narrativa. Outra estranheza para quem está acostumado a ler as edições brasileiras de mangá é a tradução de muitas onomatopeias no próprio quadro, isso também modifica bastante uma importante parte estética do mangá. 

Apesar de alguns problemas editoriais, essa é a única edição ocidental, e vale muito a pena ler esse livro, mesmo para quem nunca leu mangá. A Drifting Life é uma leitura muito boa e uma ode aos quadrinhos japoneses, para mim esse trabalho tem sentido semelhante a Amarcord ou Cinema Paradiso para o mundo do cinema. Infelizmente Yoshihiro Tatsumi não é um artista muito conhecido no Brasil, e não tenho muitas esperanças que algum dia esse trabalho será lançado por aqui, mas não é difícil encontrá-lo em livrarias no exterior e até aqui no Brasil (acabei de verificar que a Livraria Cultura tem disponível, por exemplo). Além da bela história, é um livro grande, grosso, capaz de garantir bastante tempo de entretenimento e esteticamente cai muito bem numa bela prateleira cheia de livros e quadrinhos.

Editora: Drawn & Quarterly
Páginas: 855
Disponibilidade: importado
Avaliação: * * * *

obs: No ano passado foi lançado um filme em animação chamado Tatsumi, baseado no livro, gostaria muito de encontrá-lo.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Passo de Caranguejo - Günter Grass

Heróis e vilões são fruto de escolhas políticas e da força de determinados grupos. É o que faz com que Jesus seja considerado historicamente muito mais importante do que Simão bar Kochba, rebelde judeu que deu muito mais dor de cabeça para o Império Romano do que o messias cristão. E é o que faz também com que minorias se pronunciem a favor de determinadas personalidades ou fatos através do revisionismo histórico - termo que hoje é encarado muitas vezes de forma negativa, pois está muito identificado com seu lado mais controverso, o "revisionismo do holocausto" (que por isso é classificado por determinados historiadores como negacionismo, em vez de revisionismo).

O revisionismo histórico é o ponto de partida para Passo de Caranguejo, romance mais recente de Günter Grass, o mais importante escritor alemão vivo, que atingiu seu auge na década de 1960. Paul é um jornalista mal sucedido nascido na Alemanha Oriental no dia 30 de janeiro de 1945, num navio de refugiados que afundava após ser bombardeado por um submarino russo; o navio era chamado Wilhelm Gustloff, em homenagem a um líder nazista assassinado por um judeu em 1936. Apesar de Paul ser um personagem fictício, a história de Wilhelm Gustloff é verídica: responsável pela distribuição do livro Os Protocolos de Sião, foi assassinado por David Frankfurter, e considerado então um mártir da luta do nazismo contra os judeus, tendo por isso sido lembrado com um funeral digno da presença de Hitler e outros líderes nazistas em sua cidade natal (Schwerin, coincidentemente a mesma cidade de Paul). Para completar a glorificação desse ícone da irracionalidade humana, os nazistas utilizaram seu nome para batizar o navio abordado no livro, utilizado o mesmo como cruzeiro turístico em tempos de paz (no qual a mãe de Paul passou férias) e com fins militares durante a guerra.

Esse fato histórico atrelado à sua própria história pessoal o persegue como um fantasma em toda sua vida. O revisionismo histórico começa com sua mãe, uma espécie de entusiasta do navio e guardiã da memória desse fato, considerado por ela injustamente relegado ao esquecimento, apesar de ter sido uma tragédia naval de proporções maiores do que a do Titanic. E o revisionismo vai além, através de grupos neonazistas organizados na internet, a fim de colocar Wilhelm Gustloff (tanto o navio como o "mártir") em seu devido lugar na história. Orientado por uma figura enigmática identificada apenas como "chefe", Paul inicia uma investigação sobre os fatos históricos em questão e narra sua própria trajetória familiar. Seu desejo é que esse assunto finalmente seja encerrado, mas longe disso, Paul terá que lidar com os efeitos que aparentemente nunca acabam, chegando finalmente a seu filho. 

Memória, culpa e até uma internet que engatinhava na época (o livro se passa em 1997, e foi escrito em 2002) são temas abordados em Passo de Caranguejo. O título é referência ao fato de que o narrador tem sempre que voltar para dar um passo à frente, ou seja, é impossível prosseguir sem voltar e examinar a história. Além disso, redenção e perdão por erros cometidos na juventude também me pareceram aspectos bem abordados nesse livro de maturidade de Günter Grass - o fato é que, pelo que pesquisei, esses sempre foram temas recorrentes em seus livros, e em 2005 o autor publicou a primeira parte de sua autobiografia, Nas Peles da Cebola, no qual assume que fez parte de uma tropa de elite nazista quando era adolescente.

Passo de Caranguejo certamente não é o melhor representante da obra de Günter Grass, mas tem uma escrita bastante eficiente e dinâmica, mostrando que um autor de décadas anteriores ainda pode produzir bons trabalhos. Uma leitura acessível e agradável, que me faz ter vontade de conhecer seus trabalhos mais famosos, como O Tambor

Editora: Nova Fronteira
Páginas: 205
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

sábado, 21 de janeiro de 2012

500 Essential Graphic Novels, The Ultimate Guide - Gene Kannenberg, Jr.

Graphic Novel é um termo popularizado na década de 70 por Will Eisner para diferenciar obras em quadrinhos em formato de livro, com histórias completas - e a princípio com temas mais sérios - das tradicionais comics americanas, mensais, com tramas que podem se estender por anos. Geralmente, o leitor de quadrinhos que adquire o hábito na infância tem as Graphic Novels como uma evolução natural de sua paixão, enquanto o leitor que descobre os quadrinhos depois de adulto não tem muita paciência com os formatos mensais e seus temas juvenis e já parte logo para esse formato mais sofisticado. As Graphic Novels foram responsáveis por uma boa parcela do status que os quadrinhos adquiriram como leitura séria nas últimas décadas.

500 Essential Graphic Novels, The Ultimate Guide, é mais um desses livros de listas que tanto fazem sucesso atualmente, e ainda com a marca de "guia definitivo". Obviamente, nenhum guia ou lista pode ser considerado definitivo, pois depende de fatores subjetivos dos autores e de espaço para caber tanta coisa, e este livro não fica imune a isso. Autores indiscutíveis como Alan Moore, Frank Miller, Art Spiegelman, Robert Crumb, Roy Thomas, Neil Gaiman e Stan Lee, é claro, estão amplamente listados; ao lado desses, obras excelentes de artistas nem tão famosos, alguns trabalhos que muitos não gostam e considerarão indignos de estarem ali e muita coisa underground e desconhecida, sobretudo para nós brasileiros. E, naturalmente, um monte daqueles "quadrinhos do coração" para você que não couberam nas 500 primeiras posições, o que vai te deixar indignado, da mesma forma que os livros de listas sobre filmes, discos, etc. Notoriamente, como costuma ocorrer com esses trabalhos, sente-se uma grande falta de títulos de diversas partes do mundo, para nós especificamente trabalhos brasileiros ou argentinos - o livro foca nos mercados mais proeminentes dos quadrinhos, o americano, o europeu e o japonês.

Gene Kannenberg, Jr dividiu o livro em gêneros de quadrinhos, como um lista de filmes - pensar os quadrinhos dessa forma, e não abarcados num único gênero "quadrinhos", sempre me pareceu corretíssimo: aventura, não-ficção, crime/mistério, fantasia, ficção geral, horror, humor, ficção científica, super-heróis e guerra. Antes de cada capítulo, uma introdução sobre a evolução do gênero nos quadrinhos. Na apresentação de cada título, um resumo da trama, resenha, última edição, indicação etária e, como não poderia faltar numa obra dedicada a quadrinhos, o máximo de ilustrações possíveis. Para sanar um pouco o problema da não inclusão de determinados títulos por falta de espaço, o autor ainda disponibiliza indicações de leituras afins ao final de cada resenha.

500 Essential Graphic Novels é um livro indispensável para fãs de quadrinhos, e bastante útil para quem não conhece nada do assunto mas sabe que é um meio artístico sério e deseja começar a entendê-lo. Para o fã, fica a recomendação de tentar adquiri-lo através de importação pela internet, pois é irresistível passar horas relembrando algumas das maiores obras de quadrinhos e conhecendo pequenas preciosidades ainda não descobertas; para o leitor que se interessa mas não tem tanta urgência, pelo menos fique ligado em sites e livrarias brasileiros mesmo ou, em caso de viagem ao exterior, pode ser encontrado nas prateleiras das principais livrarias lá de fora.

Editora: Collins Design
Páginas: 528
Disponibilidade: importado
Avaliação: * * * *