O sonho de toda criança é poder ser algo bem divertido e emocionante quando crescer. Eu queria ser jogador de futebol, desenhista ou astronauta, mais tarde astro do rock, e até hoje tenho minhas fantasias profissionais - adoraria trabalhar fazendo programas de viagem para algum canal de tv que pagasse tudo! Poucos de nós podem desfrutar desse prazer que deve ser trabalhar com algo que realmente se sonhou algum dia - sonho inocente de criança, não me refiro a planos para passar em algum concurso público que pague um salário absurdo e morar na orla. Yoshihiro Tatsumi é uma dessas pessoas, e além dessa realização ainda lhe foi possível contar essa história através de um belo livro.
A Drifting Life é um álbum de quadrinhos autobiográfico japonês escrito e desenhado por Tatsumi, um importante autor que criou o termo "gekiga" para distinguir trabalhos mais sérios de mangás de temas infantis - o gekiga em relação ao mangá seria um termo com a mesma conotação que as graphic novels têm em relação aos comics americanos. A história se passa praticamente toda durante a década de 1950, período no qual Hiroshi, o alter-ego do autor, inicia seu amor pelos quadrinhos japoneses e desenvolve sua técnica até se tornar um respeitado artista.
Muito mais que uma autobiografia, A Drifting Life aborda, com muita ternura, a história dos quadrinhos japoneses, além da própria história do Japão. Entre páginas que mostram detalhes da vida pessoal do autor, apresentam-se diversos personagens marcantes para a indústria dos mangás, alguns muito famosos, como seu ídolo Osamu Tezuka (o "Deus do mangá" para os japoneses), outros praticamente desconhecidos aqui no Brasil até para os mais aficionados - editores ou autores underground da época. Ao mesmo tempo é apresentado um Japão que saía do trauma da Segunda Guerra Mundial e iniciava sua ascensão no mundo capitalista como uma nova potência econômica, alguns detalhes também bem estranhos para o público ocidental - ou alguém conhece bem os atletas e cantores japoneses de 60 anos atrás?
O assunto central de A Drifting Life, a criação e o desenvolvimento do gekiga, é mostrado com bastante afinidade com a vida de Hiroshi e a história do Japão, que não aparecem no livro de forma relapsa, sem sentido. Questões de economia do Japão e mercado de mangás tem íntima relação com os trabalhos de Hirsoshi / Tatsumi, bem como seus dramas pessoais e suas preferências. A criação de um "mangá que não é mangá", como o protagonista chama, foi diretamente determinada por uma outra paixão sua que é mostrada quase que em todos os capítulos: o cinema, hábito frequente de Hiroshi que o faz importar esse tipo de linguagem para a arte sequencial japonesa.
Os desenhos vão de simples quadros com dois personagens dialogando sem fundo a painéis mais bem trabalhados. Para as partes históricas, o autor utiliza desenhos até mais realistas, quase representações de fotos de época. Os desenhos do gekiga diferem consideravelmente do mangá regular, sobretudo na falta de artifícios para representar movimentos e nas famosas onomatopeias, utilizadas em menor escala, ainda que existentes.
Gostei muito de A Drifting Life, mas tenho certas ressalvas em relação à edição da Drawn & Quarterly, até onde sei a única no mercado ocidental. Aqui no Brasil, grande mercado consumidor de quadrinhos japoneses (acho que o maior fora do Japão), estamos acostumados já há mais de dez anos com uma fidelidade à estrutura do mangá. Quase todos os mangás publicados no Brasil mantêm a ordem de leitura japonesa, da direita para a esquerda, mas como os americanos têm fama de resistirem muito à introdução de hábitos de outros povos ou diferenças culturais (isso fica claro no cinema falado em outras línguas), a edição deles foi adaptada para o modo de leitura ocidental, o que, por mais bem feito que seja o trabalho de edição, traz consideráveis prejuízos à narrativa. Outra estranheza para quem está acostumado a ler as edições brasileiras de mangá é a tradução de muitas onomatopeias no próprio quadro, isso também modifica bastante uma importante parte estética do mangá.
Apesar de alguns problemas editoriais, essa é a única edição ocidental, e vale muito a pena ler esse livro, mesmo para quem nunca leu mangá. A Drifting Life é uma leitura muito boa e uma ode aos quadrinhos japoneses, para mim esse trabalho tem sentido semelhante a Amarcord ou Cinema Paradiso para o mundo do cinema. Infelizmente Yoshihiro Tatsumi não é um artista muito conhecido no Brasil, e não tenho muitas esperanças que algum dia esse trabalho será lançado por aqui, mas não é difícil encontrá-lo em livrarias no exterior e até aqui no Brasil (acabei de verificar que a Livraria Cultura tem disponível, por exemplo). Além da bela história, é um livro grande, grosso, capaz de garantir bastante tempo de entretenimento e esteticamente cai muito bem numa bela prateleira cheia de livros e quadrinhos.
Editora: Drawn & Quarterly
Páginas: 855
Disponibilidade: importado
Avaliação: * * * *
obs: No ano passado foi lançado um filme em animação chamado Tatsumi, baseado no livro, gostaria muito de encontrá-lo.
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