Depois que li Ficções de Borges, que automaticamente virou um dos três livros supremos da minha vida, me surgiu um, digamos, dilema literário em relação ao lendário autor argentino: vontade de ler outros de seus trabalhos para conhecê-lo mais detalhadamente, mas ao mesmo tempo vontade de não ler e continuar relendo sua obra-prima por tê-la como definitiva para mim. Talvez por isso tenha demorado cinco anos e muitas releituras de Ficções para que eu pegasse O Livro de Areia para ler.
Fica óbvio que, comparado a Ficções, nenhum outro livro menor da bibliografia de Borges pode ter uma resenha e uma avaliação tão entusiástica como a anterior. O Livro de Areia é composto por 13 contos (o último deles dando nome ao livro), nenhum deles com a genialidade da lógica e dos estratagemas observados em Ficções. Entretanto, isso não tira a qualidade da escrita de Borges - mesmo sem ter as mesmas ideias geniais de antes, o autor não poderia esquecer como escrever bem, apesar de passadas três décadas. Vale lembrar que em Ficções (1944), Borges estava no auge de sua carreira de escritor, enquanto que em O Livro de Areia, escrito 31 anos depois, já estava no final de sua vida, praticamente cego, tendo ditado todos os contos. Se faltam as ideias e a originalidade de outrora, uma das características mais marcantes dos contos borgianos ainda pode ser percebida nesse livro: o ritmo, que prende o leitor do início ao fim de cada conto. Isso por si só, dadas as condições físicas e materiais adversas, faz de Borges um herói da literatura mundial - afinal, não é para qualquer um escrever o que quer que seja de qualidade sem poder enxergar o produto, reler, apagar, corrigir, reescrever, pelo menos eu penso assim.
O Livro de Areia apresenta uma certa coerência / referência entre os contos nele presentes e também com outros trabalhos anteriores. Algumas referências são citações repetidas em vários contos, notoriamente o xadrez e o mundo anglossaxônico, outras são temas sempre abordados em toda a trajetória de Borges, como por exemplo a questão da infinitude e a reavaliação de personagens históricos, além de aspectos de sua vida pessoal e de contos anteriores. Dois dos contos desse livro (Undr e O Espelho e a Máscara) são um contraponto perfeito para A Biblioteca de Babel, para mim a melhor história criada por Borges. E há também temas pouco explorados por Borges anteriormente: um conto de terror (There Are More Things) e um sobre o amor (Ulrica) que, segundo o próprio autor, é comum em sua obra poética, mas inédito na sua prosa.
Não importa se O Livro de Areia não se compara a Ficções: Borges é Borges, e independente de sua idade ou saúde sempre vai ter algo saboroso para servir seus fiéis leitores. Esse é o termo certo para O Livro de Areia: uma leitura gostosa. O próximo que me aguarda é O Aleph, o segundo de seus maravilhosos livros de contos, hierarquicamente falando.
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 112
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *
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