Considerada a obra-prima de Kurt Vonnegut, Matadouro 5, ou a Cruzada das Crianças é um romance baseado nas experiências do autor na Segunda Guerra Mundial, mais especificamente no episódio do bombardeio da cidade de Dresden, tido como um dos maiores massacres de civis da História. A impressão que se tem é que, dada a profundidade dessa experiência em sua vida, este era o livro que Vonnegut tinha que escrever, e o fez tão bem que recebeu resenhas positivas dos mais variados meios literários na época de seu lançamento, além de indicações para os principais prêmios da ficção científica e fantasia, o Hugo e o Nebula, em 1970 (perdeu ambos para A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula le Guin) . No início do livro, sugere-se que um livro desse deveria ser escrito porque as pessoas se interessam muito por histórias fortes de participantes da Segunda Guerra Mundial, e que isso rende bastante dinheiro, mas é óbvio que tal argumento não passa de um artifício de Vonnegut para impor seu característico humor, debochando de si mesmo e de quem quer que pense dessa maneira.
A estrutura de Matadouro 5 é muito parecida com a de outro livro do mesmo autor que já resenhei aqui, Deadeye Dick, uma narração sem rigor cronológico, pela qual já se sabe mais ou menos diversos acontecimentos logo no início, e talvez por isso mesmo fica-se com uma grande curiosidade de como aquilo vai acontecer. Só que em Matadouro 5, essa estratégia é muito mais radical, já que logo no início o autor deixa bem claro seu teor:
"As pessoas não devem olhar para trás. Eu certamente não farei mais isso. Já terminei o meu livro de guerra. O próximo que eu escrever será divertido. Este aqui é um fracasso. E tinha de ser, já que foi escrito por uma estátua de sal. Começa assim:
Escute:
Billy Pilgrim soltou-se no tempo.
Termina assim:
Piu-piu-piu?"
Os acontecimentos durante a guerra são os únicos narrados de forma linear, mas mesmo assim são interrompidos a todo momento por outras passagens da vida do protagonista, aí então de forma bastante caótica.
As primeiras páginas do livro são narradas por um veterano de guerra, uma breve apresentação na qual o leitor é informado sobre o processo de criação do livro. O narrador é obviamente o próprio Vonnegut, mas não fica claro se estas primeiras páginas, nas quais ele fala sobre um antigo colega que o ajuda a relembrar detalhes e uma visita ao matadouro alemão que dá título ao livro, são realmente acontecimentos da vida real ou se já ali inicia a ficção, através de um tipo de alter-ego. De qualquer forma, esta breve introdução só tem a função de criar o clima para o resto do livro, a história de Billy Pilgrim, e ademais nunca foi a intenção do autor escrever uma biografia fiel aos eventos por ele experimentados em Dresden, tanto que a primeira linha do livro diz: "Tudo isso aconteceu, mais ou menos." - a frase foi incluída na lista de 100 melhores frases iniciais de romances da American Book Review, na posição 38.
Billy Pilgrim, como já se diz logo no início do livro - digo o livro dentro do livro -, está solto no tempo, e por isso não faz sentido citá-lo no passado: ele é um soldado americano na Segunda Guerra Mundial, é um oftalmologista, é casado com a filha de um homem rico, é uma criança lutando para não se afogar numa piscina, é um homem de meia-idade prestes a sofrer um acidente de avião, é tratado como um animal num zoológico em outra dimensão... O tempo é presente em qualquer momento, foi o que Billy Pilgrim aprendeu com os tralfamadorianos, o segredo é focar-se nos momentos bons. Justamente por compreender isso, os tralfamadorianos não temem a morte nem o sofrimento, pois sabem que ninguém morre, apenas está morto em determinado momento, e em outros está vivo - e Billy é um dos poucos humanos que compreendem isso também. Apesar de todas essas discussões sobre viagem no tempo e alienígenas, e do livro ter sido indicado para o Hugo e o Nebula, entendo como um erro de interpretação tratá-lo como ficção científica, por motivos que aqui não posso explicar, sob o risco de interferir no prazer da leitura de quem ainda não leu o livro.
O tema mais aparente de Matadouro 5 é a repulsa pela guerra e pela violência, algo habitual na carreira de Kurt Vonnegut, tanto que o autor considera o ponto mais importante do livro o momento do fuzilamento de um personagem secundário por conta de uma chaleira, após o bombardeio de Dresden. O subtítulo do livro, A Cruzada das Crianças, tem uma conotação profundamente contrária à guerra em seu contexto. No entanto, outros temas talvez tenham a mesma importância ou até mais. A questão do sofrimento, discutida na forma de destino x liberdade é para mim o ponto chave do livro. A viagem no tempo, não de forma convencional da ficção científica (com máquinas), mas sim estar solto no tempo, como Billy Pilgrim, é a chave para o escapismo do protagonista. Os tralfamadorianos estranham o fato de a Terra ser o único planeta conhecido por eles no qual seus habitantes acreditam que dependem de sua vontade para determinar os acontecimentos. Eles inclusive sabem como o universo deixa de existir, e mesmo que para um terráqueo eles possam evitar tal acontecimento, isso simplesmente não faz sentido para eles.
O estilo de narrativa de Kurt Vonnegut, impecável aqui, talvez seja o que me faz gostar cada vez mais desse autor. Frases curtas, sem nenhum tipo de firula, dizendo de maneira certeira o que importa para a história, algo que só os grandes escritores conseguem desenvolver; algo que, dizem, Hemingway teve que aprender com Gertrude Stein para se tornar o grande escritor que foi. O humor, geralmente negro e ácido, também está presente em Matadouro 5, mas aqui Vonnegut utiliza três palavrinhas que entraram para a história da literatura: So it goes (traduzido na edição brasileira como "coisas da vida", o que não chega a ser tosco, mas eu não gostei). Essa pequena frase se repete 106 vezes ao longo do livro, aparecendo sempre após o relato de algo trágico. Sua interpretação é ambígua: pode remeter a este humor negro característico do autor, como pode também ser um mecanismo para a recusa ao sofrimento tratada ao longo do livro - transformar grandes perdas individuais em algo ínfimo para a história da humanidade (ou, no caso, do universo).
Os personagens de Vonnegut são também um diferencial em sua obra, tanto que diversos dos que aparecem em Matadouro 5 são utilizados em outros livros. Alguns, aqui meros coadjuvantes, são protagonistas em outro momento, como Howard W. Campbell Jr, o narrador de O Espião Americano (Mother Night), ou Kilgore Trout, o escritor de ficção científica considerado o alter-ego de Kurt Vonnegut. Me parece que os coadjuvantes valorizam ainda mais o trabalho do autor, vista sua incrível capacidade de criar características de personagens em poucas linhas, como eu já havia escrito na resenha de Deadeye Dick. Pela quantidade de personagens importantes no universo vonnegutiano, acredito que Matadouro 5 seja o livro ideal para começar a explorar a obra desse autor.
Matadouro 5 é um livro estupendo, simples em suas palavras, pequeno, com parágrafos e trechos curtos, porém complexo em seus detalhes e desdobramentos, como estou me habituando aos livros de Kurt Vonnegut, esse autor que a cada dia se coloca entre meus favoritos. Já encontrei quase todos os seus livros, em inglês, em pdf, e agora o difícil é parar de lê-los para dar chance a outros autores.
Editora: L&PM
Páginas: 226
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *
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