quinta-feira, 2 de abril de 2015

Chibata! João Cândido e a Revolta que Abalou o Brasil - Hermeterio e Olinto Gadelha

Com o movimento republicano em fins do século XIX, o Brasil tinha uma proposta de rompimento com a herança deixada por uma independência política que trouxe consigo toda a tradição patrimonialista desde o início da colonização. Feita a república, rapidamente entram em cena novos atores, mas o roteiro continua basicamente o mesmo. Passam a dominar o país as elites agrárias, sob forma de oligarquia. Deliberações do Convênio de Taubaté eram mais importantes do que a penúria causada pela seca no nordeste ou as péssimas condições de vida dos pobres nas cidades. Em alguns momentos o povo, cansado de tudo isso, explodiu em fúria, tanto no campo como nas cidades, no que os livros didáticos intitulam revoltas da República Velha.

Chibata! João Cândido e a Revolta que Abalou o Brasil conta na forma de quadrinhos um dos mais famosos desses movimentos do início do século passado, e a comovente biografia de seu líder. O ano era 1910. Mais de duas décadas haviam se passado desde a abolição da escravidão no Brasil, mas a marinha ainda reproduzia com os marujos, a maioria negros e mulatos pobres, o tratamento dispensado aos escravos nas lavouras de café. Péssimas condições de higiene e alimentação já seriam suficientes para tal comparação, mas a analogia se tornava completa com a aplicação de chibatadas nas costas dos que praticavam mínimos atos de indisciplina. No dia 22 de novembro, os marinheiros liderados por João Cândido demonstraram seu descontentamento tomando o comando da frota ancorada na Baía da Guanabara, incluindo o maior navio de guerra do mundo na época, apontando os canhões para a capital brasileira de então. João Cândido se tornou então, de fato, o primeiro almirante negro do Brasil. Os revoltosos conseguiram sair vitoriosos, com a abolição da chibata e o governo se dobrando publicamente, mas a classe dominante brasileira não deixou por isso mesmo: duas semanas depois, após outro motim que nada teve a ver com a primeira revolta, o governo encontrou o pretexto necessário para incriminar João Cândido e os outros envolvidos, impondo-lhes uma terrível punição.

O que Hermeterio e Olinto Gadelha fizeram foi prestar uma homenagem digna a esta passagem épica de nossa história e seu valoroso líder que, após se conhecer sua história e todo o sofrimento de sua vida, não há como não se conformar em não tê-lo como um grande herói nacional. Apesar de incluir diversas passagens e personagens fictícios na narrativa, fica claro que os autores se esforçaram em pesquisar o contexto histórico e o visual da época. Os quadros são bem ricos em detalhes, sobretudo na caracterização dos navios de guerra. O roteiro flui suave, como deve ser toda narrativa em quadrinhos, e os desenhos são ótimos. Toda a criação faz jus a essa história tão importante na luta do povo brasileiro contra a opressão. O trabalho foi lançado em 2008, mesmo ano em que João e seus companheiros finalmente receberam a anistia oficial do governo e da marinha, quase um século depois da heroica revolta. Hoje João Cândido tem seu nome no livro de heróis da pátria e há uma estátua sua na Praça XV, Rio de Janeiro.

Chibata! é um excelente álbum em quadrinhos e merece ser lido prontamente por qualquer um que curta a nona arte e história. Além disso, destaco a obra como ótimo recurso pedagógico, pois tenho a experiência de utilizá-lo com meus alunos com resultados muito satisfatórios. Porém o livro está fora do catálogo da editora por causa de um triste fato: em 2013, a Conrad foi condenada por plágio por conta desse álbum. Os autores foram acusados de utilizarem sem permissão personagens e passagens da peça teatral João Cândido do Brasil: A Revolta da Chibata, de César Vieira. Agora e talvez para sempre, só de segunda mão. Uma pena.

Editora: Conrad
Páginas: 218
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * * *

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O Clube do Filme - David Gilmour

Relacionamentos entre pais e filhos são tratados na cultura universal desde seus primórdios. Encontramos o tema já na Odisseia e mesmo antes, na história de Ganesha ou em alguns livros da Bíblia. Já no nosso tempo, a questão é abordada da psicanálise à cultura pop - Freud, Star Wars, Psicose e músicas de The Doors, Legião Urbana ou Elis Regina. Em outras palavras, a questão é mais velha que trocadilho sobre o pavê em festa de família, e também sempre tem alguém disposto a repeti-la. 

David Gilmour, um crítico de cinema canadense que não tem nada a ver com o cantor e guitarrista do Pink Floyd, resolveu utilizar sua experiência pessoal com seu filho adolescente para escrever mais uma história sobre pais e filhos e seus conflitos de gerações, mas com uma premissa aparentemente diferente. Digo aparentemente porque, que eu saiba, ninguém nunca tinha utilizado especificamente seu método na tentativa de um novo tipo de relacionamento com seu filho, mas se olharmos num sentido mais amplo, a fórmula não é nova. Já voltamos a esse assunto. 

Jesse Gilmour era um jovem de 15 anos que não apresentava o menor interesse pelos estudos. O resultado eram reprovações em sequência, sem que houvesse a menor perspectiva de mudança. Sem saber mais o que fazer, David Gilmour teve uma ideia pouco conservadora: concordaria em deixar o rapaz abandonar a escola, contanto que ele aceitasse assistir a filmes ao lado de seu pai, e depois discutissem alguns temas levantados pelo crítico. Gilmour estava desempregado, e utilizou esse revés em seu favor, pois teve bastante tempo livre para se dedicar ao projeto que ele chamou de Clube do Filme.

David Gilmour então começa as atividades dividindo os filmes de acordo com temas, alguns deles especificamente sobre questões relativas ao cinema em si, outros de acordo com as situações e dilemas da vida do filho. Maravilhas como Ladrões de Bicicleta, Ran ou O Último Tango em Paris dividiam espaço com coisas do nível de Showgirls. O que importava era a discussão que eles podiam gerar, e não um currículo de curso de cinema. 

A experiência durou três anos. Realmente, parece que nenhum pai que se importe com seu filho alguma vez teve a coragem de tomar uma decisão tão radical assim, mas se pensarmos em relação a livros, a ideia não é tão original e remete a um outro grande sucesso da literatura: Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas. Um livro que achei muito chato, e ao ler O Clube do Filme notei essa clara identificação. Apesar da matéria ser diferente, ambos foram escritos por pais que utilizaram seu conhecimento em um tema em especial para instruir seus filhos ao mesmo tempo em que trabalhavam seu relacionamento com os garotos. E em ambos os casos, os resultados foram livros nos quais a graça está no tema de conhecimento dos pais e só. Infelizmente, assim como em Zen, O Clube do Filme dedica pouco à sua proposta de tratar, no seu caso, de cinema, e se concentra muito na história de pai e filho, o que para mim não tem graça nenhuma.

Quando David Gilmour descreve a exibição dos filmes e a discussão resultante disso, O Clube do Filme se torna uma leitura muito gostosa para quem curte cinema. Mas na maior parte do livro, o autor prefere expor o relacionamento de pai e filho, o conflito de gerações, e as questões de um adolescente problemático de modo supervalorizado - quem se importa com um pé na bunda que um moleque qualquer leva de sua namoradinha? Além disso, essa ideia inovadora do pai, ao meu ver, nunca poderia dar certo com os valores que ele passa para o filho: um cara desempregado que janta com frequência no restaurante mais caro da cidade e viaja para o exterior, se preocupa em seu filho usar drogas mas chega bêbado em casa. Essas e outras posturas babacas do pai, como toler o rapaz já maior de idade por ele mastigar de boca aberta me passaram uma imagem do autor sendo um burguesinho medíocre e aumentaram minha antipatia pelo livro. Seu texto simplório e cheio de diálogos fracos chegou a ser um alento para mim, pois agilizou a leitura, isso quando não pulei várias partes mais desinteressantes. Bem, pelo menos existem recomendações de mais de cem filmes fundamentais, a maioria tratados em apenas um parágrafo, e nesse reduzido espaço o autor surpreende sendo eficaz e conciso como um bom crítico de cinema, o que salva o livro de uma catástrofe total.

Editora: Intrínseca
Páginas: 239 
Disponibilidade: normal
Avaliação: * *

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Abutre - Gil Scott-Heron

Impossível imaginar fins dos anos 60 sem flores e cores, viagens psicodélicas, hippies na paz e amor, liberdade sexual e o início da Era de Aquário. Contudo, fazendo-se isso fechamos os olhos para todas as outras realidades existentes naquele momento em diferentes locais do mundo. A vida dos negros norte-americanos era uma delas, bem menos colorida que a dos jovens brancos que buscavam a paz para toda a humanidade em Haight-Ashbury. No Harlem, no Bronx ou no Brooklyn, os negros lutavam por algo bem menos importante para o resto da sociedade americana: sua própria sobrevivência. Afundados em desemprego, drogas e violência policial, os negros de lá são a prova de que nem todo mundo estava afim de sair na rua descalço com flores no cabelo quando se tinha antes que tirar a desvantagem de ter nascido com a cor errada, no local errado e no momento errado, mesmo cem anos depois da abolição da escravidão naquele país. Abutre, primeiro livro de Gil Scott-Heron (1970), apresenta a visão de jovens negros dos guetos novaiorquinos sobre essa época explosiva de intensa luta por direitos civis.

Essa visão é antes de tudo autêntica. O autor tinha apenas 19 anos quando lançou o livro, e vivia no mesmo local onde toda a trama se passa. Um jovem escritor, mas com uma impressionante maturidade para sacar bem diversas questões contemporâneas. 12 de julho de 1969. John Lee, um traficantes adolescente negro e gordo é encontrado morto. Quatro personagens que tiveram alguma relação com o cadáver relatam em primeira pessoa alguns acontecimentos do seu último ano de vida. As peças tendem a se encaixar progressivamente para que o crime seja solucionado.

Como um livro policial, Abutre é bom. O roteiro é bem feito, num ritmo seguro, sem furos. Mas como retrato daquela realidade, é melhor ainda. Os quatro personagens tem algo de valor a dizer sobre aquele momento. Quatro jovens, como Scott-Heron, que representam diferentes tendências daquela juventude, e talvez tenham um pouco do próprio autor. Spade, o traficante maioral da área admirado como bandido-herói. Junior Jones, o garoto que quer ser como Spade, mas não tem culhões para tanto. Afro, engajado na luta dos direitos civis e afirmação da negritude, acreditando no sucesso do coletivo antes do individual. E I.Q., um jovem dividido entre seu extraordinário talento intelectual e a vida mundana. Tratando especificamente da cultura e da vida dos negros norte-americanos, Gil Scott-Heron acaba antecipando um gênero que seria disseminado nos Estados Unidos nas décadas seguintes, chamado Blaxploitation (black + exploitation), filmes com temática específica sobre negros visando a audiência negra. O filme Shaft (1971) é um dos principais expoentes do gênero, mas se você procura algo mais peculiar, Blacula é a sugestão. 

Só pela criação de Abutre aos 19 anos, percebe-se que Gil Scott-Heron era um artista diferenciado, mas esse foi só o início de sua carreira. No mesmo ano, lançou seu primeiro disco, com poesias gravadas, e no ano seguinte um de música propriamente dita, porém sempre misturando poemas e letras fortes. A isso se deu o nome de Rhythm and Poetry (ritmo e poesia), que posteriormente ficou conhecido como RAP, ou seja, os fundamentos do Hip-Hop. O melhor exemplo disso é a ótima música The Revolution will not be Televised - um ritmo empolgante com uma letra combativa e rebelde, como tudo o que teve origem nesse tipo de música deveria ser, em vez das besteiras dos gangstas americanos ou dos nossos funks ostentação... 

Apesar de só ter lido esse livro agora, já curto Gil Scott-Heron como músico há alguns anos. O cara é muito bom em tudo o que se aventurou na vida. Seu intuito inicial era ser escritor, e apesar de ter obtido um ótimo resultado com Abutre, só escreveu mais um livro, The Nigger Factory (1972), sem tradução para o português. Recomendo o livro e uma lista de músicas para curtir junto da leitura. Infelizmente Abutre está esgotado, mas é encontrado facilmente em sebos. 

Editora: Conrad
Páginas: 229
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * *

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Neil Young - A Autobiografia

Dois são os fatores fundamentais para que uma biografia seja bem-sucedida: uma vida cheia de passagens interessantes, divertidas ou inseridas em um contexto importante, e a forma como ela é narrada. Quando essas duas coisas se conjugam, está pronto um excelente livro ou filme. Sozinhas elas também podem funcionar bem. O primeiro fator se explica por si só, e pode dar um bom resultado mesmo que a execução não seja lá essas coisas. O segundo já se provou viável sozinho também -  veja Harvey Pekar, um arquivista com uma vida medíocre em Cleveland que criou obras-primas dos quadrinhos alternativos reproduzindo papos-furados com os amigos e situações corriqueiras de um americano médio. Em sua autobiografia e primeiro livro publicado, Neil Young não conseguiu impor nenhum dos dois fatores, e se tratando de quatro décadas no mundo do rock, muito disso se deu voluntariamente, por escolha do próprio autor.

Não sou fã de Neil Young. Na verdade, conheço relativamente pouco de sua vasta discografia (contando todas as bandas que ele tocou mais seus discos solo, são pra lá de cinquenta álbuns), mas ultimamente tenho tido muito prazer em tocar no violão algumas das músicas do excelente disco Harvest, e achei pertinente conhecer um pouco do cara que criou essas canções. 

Praticamente tudo contido em sua autobiografia era novidade para mim. Apesar de já ter bastante familiaridade com o Harvest, muita coisa importante produzida por Neil era desconhecida para mim, e passei a conhecer paralelamente à leitura. Foi surpreendente para mim descobrir que o músico teve dois filhos com paralisia cerebral, por exemplo. Bem como seu amor por carros, ferromodelismo e sua obsessão com a melhora na qualidade do som nas mídias atuais. Ou sua relação com seu pai ou sua mulher à época do lançamento do livro. Ok, mas... onde fica a música no meio disso tudo? Relegada a um ou outro dos 68 capítulos. Um terrível erro para alguém que viveu disso por décadas, e poderia ter usado a situação para criar um livro com material bem mais atrativo, ou que pelo menos respondesse às expectativas de alguém que compra a autobiografia de um músico!

Portanto, Neil Young abriu mão de utilizar o que tinha de melhor, sua experiência no mundo da música, para escrever uma autobiografia sem graça, sem apelo e sem conteúdo atrativo. Poderia até ter dado num livro bacana se ele tivesse conseguido impor um ritmo original como Harvey Pekar, mas não deu certo. A estrutura do livro é caótica. Os capítulos são espalhados aleatoriamente. No início, até achei boa a ideia dessa construção heterodoxa, meio solta no tempo como Bill Pilgrim em Matadouro 5,  mas a partir do momento em que você percebe que ele prefere falar do dia em que seu carro deu defeito no meio da estrada com sua cachorrinha como passageira do que do processo de criação em On the Beach ou Zuma, a coisa toda perde o sentido. Acaba virando meio que um diário no qual ele escreve bastante sobre o presente, meio que um livro de memórias bastante pessoais de situações insignificantes para os outros. Há muita atividade atual, muitos projetos que visam salvar o planeta e as almas das pessoas nesses tempos modernos que Neil não consegue absorver bem - de carros elétricos ao Puretone (atualmente Pono), a mídia de altíssima qualidade criada por ele para derrotar o mal que o mp3 traz para a saúde auditiva das pessoas. Só que esses papos enchem o saco, e acho que ninguém quer saber quando compra a autobiografia do Neil Young.

Posso dizer que essa autobiografia me abriu as portas para a vida e a obra de Neil Young, porém mais como um catálogo do que com conteúdo em si - li páginas na internet e ouvi seus discos no youtube como fontes paralelas de informações, muito mais úteis do que no próprio livro. E assim conheci um pouco do criador das músicas que andam fazendo minha cabeça ultimamente... e o coração da pessoa amada...

Editora: Globo
Páginas: 408
Disponibilidade: normal
Avaliação: * *

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? - Philip K. Dick

Um título inusitado como esse pode não soar familiar a pessoas não aficionadas com o mundo da ficção científica, mas a situação muda quando se diz Blade Runner - O Caçador de Androides, o clássico absoluto de 1982 que foi baseado nesse livro de Philip K. Dick. Dirigido por Ridley Scott (o mesmo de outro filme supremo, Alien - O Oitavo Passageiro), estrelado pelo "cara" do cinema de aventura e ficção dos anos 80 Harrison Ford (que além desse trabalho "só" fez as trilogias Star Wars e Indiana Jones) e com uma música inesquecível de Vangelis, Blade Runner é o que há de melhor no estilo, e mesmo quem não curte sci-fi pelo menos já ouviu falar sobre esse marco da cultura pop. Porém, ainda é pouco conhecido o livro que deu origem ao filme. Até alguns anos atrás, sequer tinha seu título original traduzido adequadamente - era lançado como Blade Runner: Perigo Iminente, aproveitando o sucesso do filme, usando inclusive o poster de lançamento do cinema como capa. Hoje a editora Aleph presta tributo a esse grande autor lançando novas edições de diversos livros seus, tendo certamente como carro-chefe Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? - mesmo que ainda se apele para o filme com uma meia-capa sobressalente com seu título (nada contra).

Como Blade Runner sempre foi um dos meus filmes favoritos, comprei o livro há alguns anos, o original, Do Androids Dream of Electric Sheeps?, mas só há alguns meses li. Fã de livros e filmes de ficção científica, já conhecia Philip K. Dick e sua fama de monstro do gênero, mas nunca tinha lido nenhum de seus livros. Azar o meu. Sua fama não é injusta ou por acaso. O livro é magnífico, e perdi tempo não conhecendo o trabalho desse cara antes. Quem viu o filme vai se lembrar do clima noir inigualável. O livro é exatamente assim, mas com uma diferença antitética: o cenário é árido, tipicamente pós-apocalíptico, enquanto no filme, por questões técnicas, cai uma chuva incessante e a névoa cerca a cidade. Não obstante, há em ambos o mesmo sentimento de desolação e "perigo iminente", como queria o título da antiga edição brasileira. 

Rick Deckard vive num planeta Terra devastado pela guerra nuclear (como em tantas outras criações da época da Guerra Fria, filhas de seu tempo). Os humanos que não migraram para fora do planeta vivem num mundo assolado pela radiação. Praticamente todas as espécies animais foram extintas. É difícil encontrar alimentos saudáveis e imaginar como a humanidade poderia viver assim. Androides criados para apoiar as pessoas passam a se voltar contra seus criadores, e Deckard é um dos caçadores de recompensa que busca identificar e "aposentar" essas criaturas. Até aí, um roteiro clichê que qualquer nerd daquela época imaginava na sua cama enquanto seus colegas de classe mais populares se divertiam com as garotas em festinhas nas casas de pais em viagem. É quando entra o diferencial entre a produção cultural de entretenimento barato e os gênios da ficção científica. 

Além de uma escrita excelente, Philip K. Dick desenvolve diversas situações que demonstram a natureza humana como única, independente de seu meio. Logo no início do livro, nos deparamos com um mundo evidentemente diferente, porém cheio de familiaridades com o nosso. Os androides não são apenas réplicas de humanos. Eles também emulam todos os tipos de animais. Entretanto, esses são apenas cópias, e não sendo raros, não distinguem seus proprietários. Ter um animal de verdade, isso sim é ser distinto. E é esse o objetivo de Rick Deckard e sua esposa: trocar sua ovelha elétrica, que todos os vizinhos sabem que não é um ser vivo autêntico, por um animal orgânico, verdadeiro. Para isso, Deckard precisa concluir um último trabalho antes de parar de caçar androides: aposentar seis deles de um tipo muito avançado, os Nexus-6, quase indistinguíveis de humanos de verdade. Daí surge outra questão, frequente em toda a carreira do autor: qual seria esse diferencial que nos distingue como humanos? Diversos outros pontos são discutidos através dessa história muito bem contada, como religião, solidão e alienação, por exemplo.

Androides Sonham com Ovelhas Elétrica? é sensacional, assim como Blade Runner, sem querer compará-los, até porque este é baseado no livro, e não uma adaptação fiel. Se faltam alguns conceitos e passagens no filme, como a questão da religião, a vida de aparências e a alienação da televisão, somente com o livro não teríamos essa cena, com essas atuações, essa música... Enfim, essa discussão livro x filme não se sustenta aqui. Adorei o livro e já estou lendo outras coisas de Philip K. Dick, novo membro do meu grupo de heróis. Entrou para o mesmo nível de fixação e bitolação que Kurt Vonnegut para mim. Adoro o filme e ainda preciso ver algumas das sete versões diferentes que já foram lançadas, antes de lançarem Blade Runner 2, que tem notícias animadoras.

Philip K. Dick foi uma das mentes mais férteis da ficção científica, escrevendo 44 livros e 121 contos, mas nunca teve o reconhecimento comercial devido enquanto vivo, apesar de, no mundo da ficção científica, ter recebido já em 1963 o prêmio Hugo, o mais importante da categoria. Hoje o autor é tido como um grande nome da literatura de língua inglesa, mas na época havia muito preconceito contra a ficção científica, considerada somente como uma literatura de entretenimento, sem qualidade literária, e por isso Philip K. Dick, apesar de prestigiado entre os fãs do gênero, passou graves necessidades financeiras - diz-se que chegou a se alimentar de comida de gato. Blade Runner seria a primeira de suas histórias a ser adaptada para o cinema, depois de anos de negociações e ajustes para que ficasse de acordo com suas exigências, mas o autor morreu quatro meses antes do lançamento. Três décadas depois, mais de dez histórias suas já se transformaram em filmes, a maioria superproduções, possivelmente detendo o segundo lugar (só atrás de Júlio Verne) entre os autores de ficção científica ou qualquer outro gênero 

Editora: Aleph
Páginas: 272
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Hey Ho Let's Go: A História dos Ramones - Everett True

Quem é meu chegado ou já leu algumas coisas aqui no blog sabe que Ramones sempre foi minha banda do coração. Musicalmente posso até preferir outros artistas hoje em dia, afinal conheci esses caras quando tinha uns 12 anos, e obviamente a gente muda muito desde então, mas Ramones é a banda que eu mais me identifiquei durante todo esse tempo. As pessoas me identificam com os Ramones, até meus pais que não tem a menor noção de nada de música sabem disso. Minha avó de noventa e tantos anos com princípio de Alzheimer lê o nome da banda nas minhas camisas e acha super engraçado em como soa ao sair de seus lábios. Meus alunos já se acostumaram a assistir às aulas de História olhando para esse nome estampado também. As pessoas simplesmente ouvem o nome Ramones e se lembram de mim, tanto que no meu último aniversário ganhei do meu amigo Dom Pedro essa biografia lançada ano passado aqui no Brasil - e já não é o primeiro livro sobre os Ramones que eu ganho e faço a resenha aqui no blog esse ano.

Em todos esses anos, busquei e tive acesso a bastante material sobre a banda. O primeiro foi uma revista lançada na década de 1990, especial sobre os Ramones, contando sua história, curiosidades, letras de algumas músicas (naquela época não havia internet para se ter acesso a esse tipo de coisa tão comum hoje, e era uma penúria entender o sotaque nova-iorquino anasalado de Joey quando não vinha a letra no encarte). A revista sumiu, alguém surrupiou, mas desde então foram livros, filmes, sites, tudo o que eu pudesse encontrar sobre eles todos esses anos. De todo esse material, nunca tinha encontrado algo tão produtivo, esclarecedor e divertido como Hey Ho Let's Go: a História dos Ramones

O livro não pode ser considerado a "biografia definitiva" da banda - afinal, quem define uma biografia assim está mentindo ou se iludindo -, mas o motivo para isso é o mesmo que justifica minha opinião positiva sobre ele: Hey Ho Let's Go foi escrito por um cara muito fã dos Ramones, e passa longe da isenção ou imparcialidade. E isso tornou a leitura muito prazerosa para mim. Apesar de diferenças em relação a gostos e preferências por essa ou aquela música ou álbum, os fãs geralmente concordam em determinados pontos, e nesse sentido ler esse livro foi como conversar com um amigo que gosta da mesma coisa que eu (aliás, pessoalmente não conheço ninguém que goste tanto dos Ramones como eu com quem eu possa conversar...). E não são opiniões sempre entusiásticas de uma fanzoca bitolada. Everett True muitas vezes critica asperamente seus ídolos por posições ou trabalhos abaixo do esperado, ainda mais pelo fato de ter acompanhado tudo na própria época dos ocorridos. É aquele fã que vibra com determinado fato e se decepciona com outro, mas não deixa de amar a banda - como acontece em toda relação humana de amor. Essa é uma perspectiva bem legal para um livro que trata de uma paixão compartilhada por milhões ao redor do mundo.

Hey Ho Let's Go é o tipo de biografia musical que prende minha atenção. Além de apresentar a vida e a personalidade de cada pessoa envolvida, trata especificamente sobre cada álbum lançado, analisa cada música contida nele, contando a história por trás da letra e às vezes até a técnica seguida em determinada gravação. Além disso, são abordados shows, clipes e participações em filmes. São informações relevantes sobre passagens às vezes obscuras, como por exemplo o caso de Richie Ramone, um baterista que fez parte da banda durante quatro anos, três álbuns, centenas de shows, alguns clipes e inclusive tem créditos em composições, mas é tão ignorado por todos os que tem alguma relação com a banda que parece que não existiu, ou pelo menos que, por algum motivo ignorado até hoje, ninguém quer que pareça que existiu. Bem como um tal Elvis Ramone, baterista convocado para substituí-lo que durou apenas dois shows, por não se encaixar na sonoridade característica da banda, e logo deu lugar para a volta do antigo baterista Marc Ramone. Até o fã mais fissurado pode encontrar informações antes desconhecidas que chegam ao público através de entrevistas inéditas para o livro.

O autor consegue impor um ritmo legal ao livro. Paralelamente à narrativa cronológica, são inseridos alguns capítulos temáticos como Na Estrada (várias partes), contando casos das muitas turnês que a banda fez; ou Em Busca do Sucesso, que procura resposta para o fato de os Ramones terem procurado ou não ser uma banda famosa, nas palavras de pessoas próximas e deles mesmos. Há também alguns capítulos nos quais as pessoas apontam seus álbuns ou músicas favoritas dos Ramones, o que abre a conversa entre vários fãs além do leitor e o autor. Além disso, a narrativa é cortada dentro dos próprios capítulos com declarações e trechos de entrevistas que não fazem parte daquilo que está sendo tratado ali no momento, mas se encaixa no contexto. O conjunto de tudo isso torna a leitura bem fluida e gostosa. Daquelas que você diz pra si mesmo "só mais um capítulo" antes de tomar coragem para ir lavar a roupa que se acumula no canto do quarto. 

Quando se fala de Ramones, tem que se ter em mente que a banda sempre funcionou em meio a brigas, disputas, rivalidades, durante seus 22 anos foi assim. Os relatos de quem acompanhou seus primeiros shows no CBGB, em Nova York, apontavam quatro moleques maltrapilhos discutindo durante os vinte e pouco minutos que ficavam no palco, sobre qual música tocar, quem errou em qual parte, esse tipo de coisa. A situação se tornava pior a cada ano de convívio, e um fato se tornou um ícone ilustrativo disso no início dos anos 80: Johnny roubou a namorada de Joey, e os dois nunca mais se falaram, mesmo se aturando até o fim da banda. Mais ou menos como os Beatles, cada membro tinha uma personalidade bem peculiar, coisa que eu já falei um pouco na resenha da autobiografia do Johnny Ramone. E como acontece no caso do Beatles, os fãs se veem obrigados a escolher lados, ter seu Ramone preferido. Everett True, escrevendo pela paixão, deixa bem claro sua preferência, principalmente por Joey, e sua antipatia por Johnny - pelas mesmas razões que apontei na resenha anterior. Tanto que, em um dos apêndices, escrito após a primeira edição do livro, ele admite ter recebido a seguinte chamada de um colaborador: "Você subestimou totalmente o papel dele na banda... Ele foi o maior guitarrista de punk rock que já viveu. Ele foi Johnny Ramone. Você deve tentar e finalmente encontrá-lo: ele está muito doente. É possível que não sobreviva." Acabou que ele não teve tempo de entrevistá-lo, Johnny morreu pouco tempo depois. Mas isso demonstra claramente essa preferência do autor, o que pra mim não é um defeito, só mais um mérito desse livro - até porque essa preferência é a mesma que a minha... Quem sabe o que eu teria achado se fosse o contrário?

Os Ramones terminam como banda em 1996, dignamente, sem se prolongar eternamente como velhinhos safados atrás de uma graninha como muitos fazem por aí, completando meio século ou mais de travessuras no mundo do rock. Contudo, a história dos Ramones continua sendo escrita por seus membros, na medida em que sobreviviam mais alguns anos após duas décadas num estilo de vida perigoso - o que você não tem muita chance de sobreviver se não for o Keith Richards. Cinco anos depois, os fãs já ficariam órfãos de Joey, vitima de câncer, seguido nos anos posteriores por Dee Dee e Johnny, o que rendeu alguns apêndices nas edições seguintes do livro nos Estados Unidos e já vieram incluídos aqui para o Brasil. Esse ano perdemos Tommy, o último dos Ramones originais que ainda sobrevivia. Pode ser que nas próximas edições venha mais um complemento aí. Mas a história permanece viva nos membros secundários que sobrevivem, mas principalmente nos milhões de fãs pelo mundo que participaram de cada show, que ouviram compulsivamente cada disco, que contaram com a ajuda das letras e canções rápidas e toscas para conseguir suportar a realidade na qual nunca conseguiram se colocar. Fãs como eu. E Hey Ho Let's Go está aí para manter a história e a paixão.

Editora: Madras
Páginas:480
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *


E ATENÇÃO: ISSO NÃO É UMA MARCA DE ROUPA OU UM MEME DE INTERNET PARA VOCÊ SAIR POR AÍ OSTENTANDO NA CAMISA SEM NEM TER IDEIA DO QUE SIGNIFICA!

A modinha está irritante e já passou da conta. Como disse uma vez o ex-empresário da banda Danny Fields, "Eles venderam mais camisas do que álbuns, e provavelmente mais camisas do que ingressos".

sábado, 13 de dezembro de 2014

O Príncipe - Nicolau Maquiavel

Quem criou o termo "os fins justificam os meios"? Se você bateu o olho e pensou em responder Nicolau Maquiavel... bem, você errou. É claro que seu nome vem à mente quando ouvimos essa famosa frase, mas a verdade é que Maquiavel nunca disse isso, bem como é provável que na maioria das vezes em que alguém cita o adjetivo maquiavélico a pessoa esteja fazendo alguma confusão. 

Esse tipo de situação me estimula a pegar alguns livros de Filosofia de vez em quando, simplesmente pelo que diz a etimologia mesmo, "amor à sabedoria", conhecer o pensamento na fonte, e não me deixar levar pelo que se diz por aí. Procuro os considerados clássicos, aleatoriamente ou por circunstância, e dessa vez escolhi O Príncipe, por interesse pela época renascentista suscitado pela série Os Bórgias, na qual, aliás, o personagem de Maquiavel está muito bem construído, apesar de algumas inconsistências históricas - ele aparece em 1494 como diplomata de Florença, quando, na verdade, nessa época ele ainda não tinha entrado para o serviço público.

O Príncipe é um pequeno manual de governo escrito por Maquiavel para Lorenzo II de Médici,  governante de Florença, durante alguns meses de 1513, tempo que passou exilado. Seu objetivo é ensinar preceitos valiosos ao governante para que conquiste e, principalmente, mantenha o poder, formando um Estado forte e sólido. Essa preocupação é bastante justificável, tendo em vista que, naquela época, formavam-se os Estados modernos europeus - Portugal, Espanha, França e Inglaterra, enquanto a Itália permanecia um amontoado de domínios rivais. Nesse ponto residia a principal preocupação de Maquiavel: o fator militar, problema já bem encaminhado nos Estados centralizados, situação que não seria possível ser equiparada pelas cidades italianas com as soluções utilizadas então - forças auxiliares, mercenários, etc. Portanto, um bom governante seria aquele que, primeiramente, fosse capaz de conquistar e manter o poder através das armas.

Nesse ponto, bem como em qualquer outro, o governante deve ser implacável. Aí se encontra a grande inovação que o pensamento de Maquiavel trouxe para a filosofia política do mundo moderno. Não haveria mais espaço para fórmulas de Estados ideais, como por exemplo a República de Platão. Maquiavel apresenta as opções viáveis em seu tempo, diferente dos filósofos anteriores. A partir de então, determina-se a separação entre ética e política (ou, se preferir, uma ética política de uma moral ou ética religiosa), no sentido de que a manutenção do poder é o objetivo principal, e não mais situações utópicas, como uma cidade perfeita governada por filósofos. O governante (o príncipe) deve fazer o que for preciso para manter seu governo. O livro é cheio de exemplos do tipo: determinada atitude é totalmente reprovável, todos concordamos, ninguém deveria fazer isso, porém, às vezes o príncipe tem que fazer, sob o risco de perder o poder. Daí essa história de "os fins justificam os meios", que Maquiavel nunca escreveu em lugar nenhum, e o adjetivo maquiavélico para determinar que alguém é pérfido, malvado, ardiloso, mesmo que seja em situação que nada tenha a ver com filosofia política ou contexto da Itália Renascentista.

Esse é o tema principal de O Príncipe, fazer o que tiver que ser feito para que o poder seja mantido, mas a discussão se aprofunda um pouco mais. Maquiavel não se limita a dizer o que o príncipe deve fazer, mas também como isso deve ser feito. Se baseando em diversos exemplos da história da humanidade, da realidade de seu tempo e de sua própria experiência como diplomata e funcionário público, o autor faz recomendações do tipo, seja amado ou temido, de acordo com a necessidade, mas nunca odiado. Ou também: se for para punir, que essa punição seja definitiva, sem chance de retaliações, mas se for para beneficiar, que se faça aos poucos, para se criar uma expectativa positiva aos beneficiados.

A leitura de O Príncipe tem esse sentido, o de compreender adequadamente este pensamento, tão importante que influenciou diversas personalidades de épocas posteriores, como Napoleão Bonaparte e Benito Mussolini, e teve atenção de pensadores de nossa época como Antonio Gramsci. Não é uma leitura divertida, em certos pontos torna-se até chata por causa dos inúmeros exemplos de obscuras cidades italianas do século XVI, mas de qualquer forma é um livro bem curtinho e pode se começar e terminar no mesmo dia, dependendo de quanto material extra vem na edição - introduções, notas, essas coisas. São diversas as opções, a que li foi a que está presente na épica coleção Pensadores, da editora Abril. O importante é ter alguma leitura de apoio e colocar o livro em seu contexto para que faça sentido e se tire bom proveito dele. 
 
Editora: várias
Páginas: cerca de 200
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

O Castelo de Papel - Mary del Priore

Biografia entrecruzada de princesa Isabel e seu marido Gastão, o Conde d'Eu, O Castelo de Papel narra a vida de dois personagens pouco aclamados na História do Brasil, apesar de terem seus nomes ligados a fatos cruciais na nossa trajetória: ela, à Lei Áurea; ele, à Guerra do Paraguai. Escrito por Mary del Priore, historiadora que escreve fácil para o leitor leigo, o livro segue sua linha de popularização da História, sem deixar o ofício de historiadora de lado, tendência seguida também por outros historiadores a quem admiro, como Eric Hobsbawm e José Murilo de Carvalho. Contudo, esse trabalho de Mary del Priore apresenta alguns poréns. 

A começar pelo material que a autora tinha em mãos. A vida do casal nada teve de extraordinário, marcante, nem ao menos muito curioso. Ela mesma os classifica como "Ele, surdo. Ela, feia", numa síntese da mediocridade das personalidades abordadas. Gastão era um típico nobre europeu, com hábitos aristocráticos e vontade quase que exclusiva em participar de ações militares para honrar a tradição da família Orleans - o que só conseguiu por um breve período no Paraguai durante toda a sua vida. Isabel era uma beata criada para ser dona de casa, mãe e esposa, pelo menos assim se apresenta. Mulher mulherzinha, típica da época, nada revolucionária ou radical como uma Anita Garibaldi ou Maria Quitéria (ou Ana Neri, antes que alguma mente menos esclarecida me acuse de algum "ismo" por citar só mulheres em atividades "masculinas"). Nenhum dos dois era levado em muita consideração pelo imperador ou a opinião pública, ela por ser mulher, ele estrangeiro. Aliás, eles mesmos em grande parte dispensavam essa participação na vida pública, preferindo sempre o aconchego do lar em Petrópolis ou Laranjeiras, tomando como suplício as vezes em que tiveram que assumir o comando na ausência de D. Pedro II no Brasil. O que estimula a vontade de ler é quase que exclusivamente o contexto histórico em que estavam inseridos: o Segundo Reinado, sobretudo no período de decadência e queda. Tanto é que, ao período compreendido entre a morte de D.Pedro II e a morte do casal, cerca de trinta anos, são dedicadas apenas as últimas sete páginas do livro! Quase metade da vida morna da princesa em apenas 2% do livro, para se ter uma ideia. A contrapartida para isso é a boa contextualização que Mary del Priore faz do papel do casal na vida pública no período, mas ainda assim, parte considerável da narrativa é composta por transcrições de documentos, tirando sua dinâmica e originalidade.

Essa questão exposta acima nos coloca outra: por que alguém dedicaria um livro a personagens tão monótonos quando poderia escolher qualquer outro mais vivo, colorido? Tudo bem, a importância histórica deles e a contextualização seriam justificativas plausíveis mas, analisando a obra de Mary del Priore, nota-se uma, digamos, interlocução do presente trabalho com outros. O site Botequim Cultural publicou um artigo no qual expõe a tese que questiona a vasta produção da escritora (praticamente um livro por ano), relacionando-a em alguns momentos com uma superficialidade de pesquisa. Em O Castelo de Papel, há citações nas quais se percebe que muito foi retirado de trabalhos anteriores, e até material usado para o trabalho posterior lançado no ano seguinte (Do Outro Lado, a história do sobrenatural e do espiritismo). Cheira a jabá, mas até aí tudo bem. O problema é: quando se vê que, no mesmo período, a autora já escreveu livros de personagens próximos aos abordados aqui, como a Condessa de Barral e Dom Pedro Augusto (o elogiado O Príncipe Maldito), fica claro que o Conde d´Eu e a princesa Isabel não foram foco de uma pesquisa própria com objetivo de se produzir um trabalho sobre eles, mas sim um material paralelo de outras pesquisas, aproveitado para o lançamento de mais um livro! 

Tudo isso dá uma má impressão de oportunismo comercial, o que já cria antipatia, mas o resultado prático mais desagradável, como assinalado pelo artigo citado acima, é uma certa superficialidade da pesquisa. Nada de novo ou original nas interpretações, e questões controversas que teriam uma ótima oportunidade para serem esclarecidas não são abordadas. Nesse ponto, o que mais me incomodou, pela expectativa que eu havia criado ao comprar o livro, foi a falta de discussão sobre a polêmica participação do Conde d´Eu na Guerra do Paraguai. Muito se é dito sobre sua crueldade nos campos de batalha ou sua incompetência à sombra de Caxias, assuntos que alguns concordam totalmente ou com parcimônia, outros atribuem ao clima político de determinados períodos (a ideologia republicana, tentando depreciar a imagem de tudo ligado ao período monárquico, ou as décadas de 1960 e 70, representadas pelo livro O Genocídio Americano, do jornalista Júlio Chiavenato, uma época em que a luta contra o imperialismo e a ditadura militar eram o mote, e acusar o Brasil e o exército de serem representantes dos interesses da Inglaterra significava colocá-los do lado malvado da guerra, incluindo o conde). Quanto à princesa Isabel, essa visão de uma mulher fraca e sem maiores ambições do que ser a filha-esposa-mãe ideal - justamente a propagandeada pelos opositores do regime na época, e por isso, suspeitíssima - me parece contraditória quando exposta sua rivalidade com Dom Pedro Augusto, filho de sua irmã mais nova que se supunha poder iniciar o terceiro reinado no lugar da tia. Pode ser que Isabel não fosse tão bobinha como se dizia e se diz, ou que fosse mesmo, e que essa rixa fosse fruto de ciúme. O fato é que não há essa discussão, e a Isabel mulherzinha é decretada sem contestação. Esses são alguns dos assuntos que não são tocados em O Castelo de Papel. Pelo contrário, às vezes parece até que a autora tomou uma certa simpatia pelo pobre casal, "o surdo e a feia" novamente, deixando de lado uma visão mais crítica, imparcial e profunda que poderia ter sido feita.

Essa questão do Conde d´Eu na Guerra do Paraguai foi um dos principais motivos do meu interesse por essa leitura, posto que minha monografia de graduação foi sobre esse período e conservo até hoje esse particular interesse dentro da História. Há anos guardo essa controvérsia, e não foi dessa vez que a tirei de mim. Fiquei na vontade, insatisfeito... De qualquer forma, comprei o livro também por motivos profissionais - minha experiência como professor já me mostrou que, se você quer conquistar o aluno nas aulas de História, traga-lhe pormenores, detalhes, curiosidades, enfim, fofocas (contanto que elas sejam registradas pela historiografia, claro!). Biografias são sempre bom material para esse tipo de atividade, e apesar de todas as deficiências dessa, considero uma leitura mediana. Pelos temas curiosos abordados por Mary del Priore em outros livros e opiniões positivas da crítica especializada a trabalhos anteriores (além de respeito no mundo acadêmico), pretendo dar outra chance à autora futuramente, acredito que haja pontos mais altos em sua carreira. 

Editora: Rocco
Páginas: 317
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Café-da-Manhã dos Campeões - Kurt Vonnegut

Dando continuidade ao meu projeto de ler todos os livros de Kurt Vonnegut, esse que se tornou um de meus heróis da literatura, e provavelmente o autor que mais atrai meu interesse nos últimos anos, tomei para ler um de seus livros mais famosos: Café-da-Manhã dos Campeões, esse título que talvez seja o mais fantástico de todos os tempos - eu pelo menos não canso de repeti-lo como lema depois de noites memoráveis... Bem, apesar desse título profundamente inspirado e inspirador - tirado de um cereal matinal amplamente vendido nos Estados Unidos na época do livro - eu já estava ciente desde o início que essa não seria uma leitura excepcional, já que o próprio autor a classificou como "c", mas ainda assim, para mim, como fã de Vonnegut, ela era vista como essencial, pois apresenta personagens e passagens fundamentais na construção do universo vonnegutiano, principalmente a participação de Kilgore Trout, o escritor de ficção científica que serve de alter ego do autor, como um dos protagonistas da história.

A história se passa em Midland City, a representação ficcional de uma típica cidade do meio-oeste americano (que futuramente vem a ser destruída por uma bomba de nêutrons em Deadeye Dick), e gira em torno de dois personagens: Kilgore Trout, que viaja para lá para receber um prêmio por influência de um milionário que o tira da obscuridade (Eliot Rosewater, outro personagem recorrente em seus livros), e Dwane Hoover, um empresário local que, sabemos logo no início, vai surtar depois de ler uma história de Trout. Como em outros de seus livros, Vonnegut se baseia largamente em suas experiências pessoais e passagens marcantes de sua vida para tecer o enredo com minúcias e bizarrices tão características suas. Nesse caso Vonnegut se baseou especialmente no fantasma de sua mãe suicida, da mesma forma que o horror da Segunda Guerra Mundial foi para Matadouro 5

A narrativa é, em parte, semelhante a de outros livros seus, com a ironia e o deboche como fios condutores de toda a história, apoios para suas críticas contundentes à sua realidade de racismo, preconceito, desigualdade, hipocrisia, mas aqui Vonnegut experimenta ao utilizar desenhos seus espalhados por todo o livro - desenhos simplistas, porém espirituosos, que traduzem bem o humor característico do autor. Também seguindo a linha de seus outros livros, cada detalhe da história consegue agir por si só para estimular a imaginação do leitor numa composição compartilhada da história, uma das coisas que mais me encanta em seus livros.

Tudo o que Vonnegut tem de melhor está nesse livro, os personagens, a ironia, os detalhes encantadores, e nada disso se torna repetitivo quando comparado com seus outros livros. Entretanto, para mim (e acredito que também para o autor quando o classificou como um livro médio) parece que  o que ele não conseguiu dessa vez foi aplicar um ritmo empolgante à narrativa, e sua ironia, apesar de ter o mérito de uma tentativa original conjugada com os desenhos, perde um pouco o tom, talvez exagerando demais aqui. Independente de seus defeitos e deficiências, Café-da-Manhã dos Campeões foi essencial para mim como fã de Kurt Vonnegut e seu universo, e acredito que até para quem não conheça o autor e sua obra possa ser uma leitura agradável, mesmo longe de ser excepcional.

Editora: L&PM
Páginas: 310
Distribuição: normal
Avaliação: * * *

p.s: Em 1999 foi filmada uma versão do livro com Bruce Willis no papel de Dwane Hoover. Vou procurar, por curiosidade, mesmo sabendo que foi considerado pelo próprio Vonnegut como "sofrível"...

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Marvel Comics: A História Secreta - Sean Howe

Poderíamos categorizar como biografia um livro que conta a história de uma editora de quadrinhos, ou seja, uma empresa? Após ler Marvel Comics: a História Secreta, posso afirmar que sim, já que o mote principal abordado por seu autor, o jornalista Sean Howe, é justamente esse: mostrar a dualidade e os conflitos existentes entre o lado empresarial da Marvel, ditado por interesses de mercado, e sua contrapartida humana, que envolve tanto criatividade quanto paixões, desavenças, vingança, orgulho e todo tipo de outras situações que podem ocorrer no convívio de seus diversos membros.

Dificilmente alguém que viva no meio urbano hoje em dia pode não conhecer a Marvel Comics, pelo menos de nome. Seu slogan é praticamente onipresente em livrarias, lojas de brinquedo, brindes de lanchonetes e tudo mais, devido à popularidade que personagens como Homem-Aranha, Capitão América, Hulk, Thor, Homem-de-Ferro, entre outros, vêm alcançando nos últimos 15 anos através de produções milionárias para o cinema. É obvio que todos os personagens citados já fazem parte do imaginário popular há muito mais tempo, a diferença é que hoje sua exposição é muito maior - e sua rentabilidade, mais ainda.

Uma das coisas que se pode conhecer com a leitura desse livro é a trajetória que a editora percorreu até chegar a esse ponto. Começando em 1939 com o nome Timely Comics, a Marvel passou por diversas fases, tendências, acertos e erros, tanto artísticos como comerciais. Mas principalmente, durante essas quase oito décadas, a Marvel passou na mão dos mais variados tipos de pessoas, com suas escolhas, seus dilemas, seus amores e ódios. E é sobre essas pessoas, muito mais do que da história dos personagens famosos e lucrativos da editora, que Sean Howe resolveu escrever.

Quando se fala em Marvel Comics, sob qualquer aspecto, não se pode desvencilhar a imagem de Stan Lee, aquele velhinho simpático que aparece rapidamente em todos os filmes dos super-heróis da editora hoje em dia. Sobrinho de Martin Goodman, criador da Timely, Stan Lee, hoje com mais de 90 anos, esteve presente em praticamente todos os momentos da história da Marvel, direta ou indiretamente, como roteirista, editor ou simplesmente homem de negócios buscando outros nichos de mercado para a editora (sobretudo o cinema, quase uma obsessão sua), mas acima de tudo, sendo o responsável pela criação dos personagens que surgiram na década de 1960 que formaram a espinha dorsal do universo Marvel. Quer dizer, pelo menos na versão oficial, já que uma das grandes discussões que se arrasta até hoje em dia é o papel de Lee na criação desses personagens - os parceiros dele, como Steve Ditko e Jack Kirby, acusaram-no até a morte de ter um papel bastante reduzido nesse processo. Só que Dikto, Kirby e tantos outros permaneceram muito menos tempo na Marvel do que Stan Lee, e como se sabe, a história oficial é sempre a história contada pelos vencedores.

Essa questão de créditos de criação dos personagens e, principalmente, os direitos comerciais sobre eles, é outra discussão importante no livro de Sean Howe, já que sempre acompanhou os artistas e proprietários da Casa das Ideias. Em todas essas décadas de quadrinhos de super-heróis, tanto a Marvel como sua principal concorrente, a DC Comics (editora de outros ícones como Super-Homem e Batman), sempre conseguiram manter sua propriedade sobre os personagens criados para fazer parte do seu universo. A alegação das editoras é que os criadores são contratados no esquema "work-for-hire", algo do tipo freelance, e isso nunca foi revertido a favor dos artistas. A principal tentativa de superar essa situação veio na década de 1990, quando desenhistas de uma nova geração se tornaram superstars no mundo dos quadrinhos e decidiram que era a hora de se vingar do que eles e muitos outros antes encaravam como exploração de seu trabalho. Artistas como Jim Lee, Rob Liefeld e Todd MacFarlane abandonaram a Marvel e criaram uma nova editora, a Image Comics, que por algum momento representou uma ameaça real ao domínio Marvel/DC.

A criação da Image não foi o único momento de crise e risco de extinção da Marvel Comics. O livro apresenta diversos outros períodos de vacas magras, tanto criativa como financeiramente, em que a Marvel quase fechou as portas. Talvez esse seja um ponto fraco na dissertação de Howe, pois o autor negligencia a situação do mundo nos acontecimentos referentes à Marvel - por exemplo, acho que ninguém que escreva sobre uma empresa pode deixar de levar em conta a crise mundial iniciada em 1973 com a alta do petróleo ditada pela Opep. O autor poderia ter trabalhado mais profundamente essas questões, ou outras como a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos na década de 1960, que são apenas citadas, quando muito.

Porém, como já citado, a linha condutora do livro é mesmo a dicotomia emocional/humano x racional/comercial. Com o tempo, a Marvel foi crescendo, e ao mesmo tempo em que tinha que tomar decisões frias e comerciais que uma empresa precisa ter para sobreviver no capitalismo, seus fãs cresciam, e alguns deles acabaram por entrar na equipe da editora. Esses meninos que tiveram a companhia de seus heróis durante toda a vida não queriam colocá-los em situações constrangedoras por causa de interesses mercadológicos (tipo, qual era a lógica de o Homem-Aranha utilizar um "Aranha Móvel" para se locomover no congestionamento de Manhattan se ele podia simplesmente se balançar entre os arranha-céus?). O livro coloca situações como essas de maneira bastante interessante, citando exemplos de como alguns autores conseguiam furar o bloqueio de editores, principalmente nos títulos menos visados, nos quais alguns roteiristas e desenhistas conseguiam até incluir temas políticos e sociais de forma velada, como o uso de drogas. Esse equilíbrio de tendências foi fundamental para a sobrevivência da editora, já que a radicalização para um ou outro lado certamente quebraria a empresa.

Hoje eu não leio mais quadrinhos de super-heróis como antigamente. Ao passarem os anos da minha vida, fui aos poucos deixando de lado essa vertente mais popular dos quadrinhos e me interessando por criações com temas mais adultos, como mostram as inúmeras resenhas de quadrinhos que eu já escrevi nesse blog. As grandes sagas que se estendem por anos, as reviravoltas, as tramas e subtramas que se encadeiam nas dezenas de revistas mensais já não me interessam como faziam durante minha infância e adolescência. Hoje em dia, as histórias nada mais são do que recauchutagens de tudo o que foi escrito nas décadas passadas por grandes nomes como Chris Claremont, Jim Starlin, Roy Thomas e tantos outros que eu adorava e ainda adoro ao reler minha coleção de gibis antigos. Não vejo mais graça em acompanhar mortes, ressurreições, perda e ganho de poderes e todas essas coisas que não tem fim, enquanto os personagens continuam com a mesma idade da década de 60. Já deu o que tinha que dar pra mim, fica agora para as gerações que iniciam seu caminho nesse mundo. Mas como fã de quadrinhos desde sempre, e com esse sentimento de companheirismo com os super-heróis da minha juventude que nunca me abandonou, obviamente essa leitura foi muito interessante para mim e me despertou muitos sentimentos - além de a leitura ter fluído facilmente e eu ter devorado as páginas em pouco tempo. Quando criança e adolescente, você não pode imaginar que a criação dos personagens e histórias que sempre foram o seu mundo pessoal passe por tantas situações escabrosas, ganância, passadas de perna, puxadas de tapete, jogatinas comerciais. Não se imagina que, para aquelas páginas terem chegado até você, muita gente passou dias e noites sem dormir para cumprir prazos ditados pelo mercado editorial, substituíram momentos com suas famílias nas manhãs de sol por confinamentos em seus estúdios, e alguns até morreram por causa disso. Marvel Comics: A História Secreta mostra todos esses episódios de paixão, dor, sacrifício e tudo o que os heróis passaram em todas essas décadas ao nosso lado - e aí você descobre que, na verdade, foi tudo o que os autores passaram em suas vidas. Foi tudo o que você passou na sua vida. E você chega ao fim do livro com um sentimento de profundo agradecimento por todos os heróis da vida real que fizeram a Marvel existir como ela é ou foi durante a sua existência.

Editora: Leya
Páginas: 560
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

sábado, 13 de setembro de 2014

Rascunho do novo livro de Alan Moore está pronto e tem mais de um milhão de palavras!

Os fãs do homem já podem comemorar: o rascunho do novo livro de Alan Moore finalmente ficou pronto! Em um trecho de uma entrevista publicado aqui no blog em 2010, Moore falava que seu livro já tinha mais de 1500 páginas. Agora, finalmente concluído, o calhamaço tem mais de 1 milhão de palavras, o que o torna maior que a Bíblia, ou com o dobro do tamanho de Guerra e Paz. Certamente será uma obra restrita para seus seguidores mais bitolados (me incluam nessa), o horror de qualquer editor com um mínimo de tino comercial. E Alan Moore não está nem aí pra isso: "Qualquer editor competente me diria para cortar dois terços desse livro, mas isso não vai acontecer." Esperamos que, de uma forma ou de outra, essa história possa chegar até nós.

Como dito na mesma entrevista, seu novo livro vai se chamar Jerusalém, e como o anterior, A Voz do Fogo, se passa em Northampton, sua cidade natal. Porém, se o primeiro explorava diversos momentos na história da localidade, Jerusalém tratará especificamente de seu bairro, explorando sua história familiar e a natureza do tempo, usando elementos de fantasia e experimentos de estilo que remetem a James Joyce, Samuel Beckett e John dos Passos. 

Foto: Murdo Macleod

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Quando eu era o Tal - Sam Kashner

Todo mundo já teve um ídolo na vida, um modelo a seguir, seja um artista, um jogador de futebol ou seu próprio pai ou avô, por mais iconoclasta que alguém possa ser. Alguém em quem se espelhar, que se deseja ser igual, enfim, alguém que você ache foda e quer pelo menos estar com essa pessoa. Sam Kashner, um judeu americano de classe média e vida tranquila de subúrbios de Nova York, um menino sem muitos atrativos para as garotas além do talento e gosto pela poesia, encontrou seus ídolos na Geração Beat: Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs, Gregory Corso. Ele queria ser um deles, queria viver aquela vida de liberdade e irmandade cáusticas narrada em On the Road, Howl, Naked Lunch ou Bomb. E o que era uma ilusão juvenil pareceu se transformar em realidade quando Ginsberg fundou a Escola Jack Kerouac de Poetas Desencarnados, que contava com a presença do próprio Ginsberg e todos os beats vivos na época (meados dos anos 70): Burroughs, Corso, Peter Orlovsky, além de grandes autores que não formaram o núcleo Beat original mas se destacaram posteriormente, como Anne Waldman. Sam Kashner não teve dúvidas em abandonar uma vaga no conceituado Hamilton College para se tornar o primeiro (e por um bom tempo o único) aluno de poesia da Jack Kerouac School. 

Inicialmente, o jovem poeta se vê realizando um sonho ao conhecer pessoalmente todos os seus heróis, fazer parte de seu mundo, comer na mesma mesa que eles, mas logo percebe que nunca poderia se tornar um deles, pois eles simplesmente não existiam mais! Como a excelente foto da capa mostra - Allen Ginsberg, Philip Whalen e William Burroughs como três pacatos vovôs em uma sauna -, os antigos Beats não estavam mais cruzando a América do Norte atrás de experiências extremas com sexo, drogas e jazz. Agora eles conversavam sobre problemas com hemorroidas, decadência sexual e questões administrativas de uma universidade em busca de um certificado. Bem, talvez exceto por Gregory Corso, que se negava a abrir mão de seu lado selvagem, e de quem Sam mais se aproximou durante sua passagem pela Jack Kerouac School, numa relação de amor e ódio.

Logo na primeira página, o autor emite uma advertência: "Por favor, não leia o livro se você estiver procurando (como eu estava no começo da década de 70) por uma história da Geração Beat." Não sei qual era a intenção dele em escrever isso, mas simplesmente não procede. Quando eu era o Tal é um livro de memórias sobre seu tempo ao lado das lendas Beat já velhas, sim, mas não por isso deixa de ser recheado das mais saborosas histórias dos velhos tempos daquela turma. Entre algumas tarefas como manter Corso longe das drogas para que termine seu livro ou finalizar um poema de Ginsberg sobre sua experiência em fazer sexo oral em Neal Cassady, Sam Kashner esmiúça o tanto que pode sobre as personalidades (quase sempre conflitantes) de seus heróis e descobre histórias que vão do emocionante ao perturbador. Pode não ser uma história da Geração Beat no sentido cronológico, de cabo a rabo, mas uma história que se faz por pequenas passagem esparsas. As citações a personalidades contemporâneas às histórias como Patti Smith, Bob Dylan, Keith Richards e os Beats mortos Kerouac e Cassady são constantes.

Entretanto, o ponto central do livro é mesmo a desconstrução dos ídolos, sua transformação em seres humanos comuns com todos os seus defeitos e qualidades, a mudança da idolatria para um sentimento de maior proximidade, a admiração através da amizade. Isso fica bem claro quando o autor começa a descobrir que seu ídolo pode ser tão fraco ao ponto de se deixar manipular por um guru de meia tigela que bebe, anda de Rolex e está sempre cercado de belas garotas, mas ao mesmo tempo recebe pequenos atos de ternura que só o convívio é capaz de produzir. E fica claro também que mesmo seres humanos comuns podem continuar a ser ídolos.

Paralelo a tudo isso, Quando eu era o Tal não deixa de ser um livro de memórias pessoais, com lembranças familiares, experiências amorosas, medos e expectativas. A intercalação de fotos dos Beats com fotos da vida privada do autor ao final do livro deixa claro esse viés. Acho que para alguém que não conhece a Geração Beat esse livro não será de muita utilidade e proveito, devido às suas referências do início ao fim, mas para os fãs da era mais doida da literatura, é uma leitura bastante útil em uma abordagem original.

Editora: Planeta
Páginas: 360
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Ele Está de Volta - Timur Vermes resenha

Hitler acorda num terreno baldio de Berlim, em 2011, como se nada tivesse acontecido entre os momentos finais da Segunda Guerra Mundial e os dias de hoje, pelo menos para o führer. Essa é a estranha premissa para Ele Está de Volta, romance de estreia do alemão Timur Vermes. De uma situação bizarra como essa só se pode esperar duas coisas: uma comédia ou uma ficção científica bem underground. Ficamos aqui no primeiro caso, e parece que a piada realmente foi boa, já que, só na Alemanha, já foram mais de 1,5 milhão de exemplares. Rapidamente surgiram traduções para mais de 30 idiomas, incluindo nosso português.

Não se sabe ao certo o que aconteceu para Hitler vir parar nos nossos dias da mesma forma que estava em 1945, mas isso não tem a menor importância para os objetivos do autor (aliás, se a coerência científica e histórica tivesse importância nesse livro, seria errado Hitler ter acordado com a saúde perfeita, já que em seus últimos dias ela estava seriamente comprometida). O nazista simplesmente acorda, se levanta, sem nem desconfiar o que ocorria, tanto que seu primeiro pensamento é retornar imediatamente ao seu bunker. Ao caminhar pela Berlim de hoje, ele começa a perceber que algo havia mudado - dada a integridade física da cidade, ele obviamente deduz que seu país ganhou a guerra. O contato com as pessoas o faz descobrir aos poucos o que estava acontecendo; e fazer amizade com um jornaleiro turco e ter acesso aos principais jornais e revistas ajuda a acelerar esse processo. Logo, como era de se esperar, o tirano começa a planejar sua volta ao poder, e vê sua grande oportunidade nos meios de comunicação atuais, com os quais ele nem sonhava em contar no seu tempo. 

O choque de realidade de Hitler com os tempos atuais é o primeiro ingrediente que dá graça ao livro. Seu estranhamento se dá em todos os sentidos: tecnologia, costumes, política, economia. É bem engraçado imaginar seu contato com a internet, sua reação à quantidade de imigrantes na Alemanha atual, ao capitalismo corporativo moderno e suas inimagináveis empatias com situações dos dias de hoje - o Partido Verde alemão, por exemplo, é admirado pelo tirano; já as pessoas recolhendo cocô de seus cachorros na rua são tidas como loucas por ele. O que mais dá mais graça nisso tudo é a narrativa em primeira pessoa pelo próprio Hitler, rebuscada, antiquada, dramática nos mínimos detalhes, com pretensão de ser séria - afinal ele realmente é o Hitler, por que não se levaria a sério?

O outro lado da piada é justamente o contrário: a visão da sociedade atual sobre o suposto Hitler. É obvio que ninguém acredita no absurdo do verdadeiro Hitler ter voltado, e todos o tratam como um excelente ator interpretando seu personagem de forma impressionante. Ninguém vai levá-lo a sério. Em 2011, Hitler é uma piada para todos, como se todo seu ódio e fanatismo tivessem ficado no passado até para o mais fanático neonazista. Pelo menos da forma caricata que seria a interpretação de um comediante nos nossos dias. E por causa dessa "interpretação", Hitler volta a conquistar as pessoas, não mais pela sedução de suas promessas de prosperidade para os alemães e vingança, mas pelo seu talento de ator (que originalmente, na década de 1930, ele já tinha). A partir daí há espaço para uma discussão em voga hoje em dia, inclusive para nós aqui no Brasil: a questão do politicamente correto. Se Hitler em 2011 vira um recordista de visualizações no Youtube e ganha seu próprio programa na televisão, há também aquele lado que se sente ofendido, e aí começa o problema dos limites da liberdade de expressão e censura (que já existia, só que às avessas, na sua época). Essa superexposição de Hitler na mídia também busca satirizar o fascínio atual das pessoas pela mídia popular e a mania de memes ou conteúdos virais que vem crescendo.

É claro que, à parte a sociedade retratada no livro, a nossa própria sociedade deve se questionar sobre a graça de se fazer piada com um personagem como esse, responsável pelo extermínio de milhões de pessoas. Em outros textos na internet, pareceu inevitável aos autores a citação de O Grande Ditador, filme de 1940 de Charles Chaplin que satiriza Hitler, na época que ele ainda era vivo e os Estados Unidos ainda não tinham entrado na guerra (e algumas fontes afirmam que Hitler adorava esse filme e tinha uma cópia em sua coleção). Em minha opinião, a comparação não é válida, pois há uma diferença muito grande entre os dois trabalhos. No filme, o ditador é ridicularizado por uma visão de fora, enquanto que Ele Está de Volta é narrado pelo próprio. Suas ideias apresentam explicações, uma linha de pensamento lógica, que não deixa de ser ridícula, mas é coerente. A crítica não vem de fora, é o próprio personagem que se defende ou se incrimina. E nesse sentido, achei que Timur Vermes encontrou a medida certa para não apresentar o protagonista como um anti-herói que pudesse conseguir a simpatia do leitor, mas também não pegar pesado demais em temas até hoje delicados, sobretudo na Alemanha (eu imaginaria um Hitler verídico muito mais antissemita do que o do livro, por exemplo). Pessoalmente, não vi problema nenhum nesse sentido, me parece que a imagem de Hitler já é bem clara para toda a humanidade para que um livro desse tenha o poder de mudá-la ou suavizá-la (bem, exceto por meia dúzia de revisionistas e os indonésios). 

Ele Está de Volta é interessante por se tratar dessas questões abordadas acima, mas como leitura não é lá essas coisas, apenas um livro razoável. Há que se considerar que o entendimento depende de um conhecimento mínimo sobre a Segunda Guerra Mundial e o mundo atual, mas ainda assim existem pequenas dificuldades para leitores não alemães por causa das referências a inúmeros aspectos da realidade daquele país que nós desconhecemos - e isso transforma alguns trechos em piadas internas deles. No fim das contas, é uma leitura engraçada, mas não chega a ser hilária. Ainda assim, considero válida.

Fora qualquer coisa escrita no livro ou aqui nessa resenha, a capa é sensacional!

Editora: Intrínseca
Páginas: 304
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Revolução Francesa, volumes 1 e 2 - Max Gallo

Como escrever sobre um evento tão abordado pela historiografia como a Revolução Francesa - ainda por cima escolhendo o título mais simples de todos - e tornar seu trabalho um best-seller? Max Gallo conseguiu atingir tal feito escrevendo a história da revolução que inauguraria o mundo contemporâneo de uma forma original, mesclando a metodologia de um historiador membro da Academia Francesa com a criatividade estética de um escritor de romances históricos. 

O mérito de Gallo foi ter conseguido encontrar a medida perfeita entre os dois caminhos e escrever um livro agradável para qualquer que seja o leitor: nem rigor de citações de fontes ou várias considerações sobre determinado assunto, nem situações imaginadas a partir de fatos históricos. Portanto, mesmo que o autor não tenha inventado nada que não tenha ocorrido para enfeitar a história (afinal, o que mais precisa ser inventado para tornar a Revolução Francesa uma passagem tão fascinante?), ele teve que fazer escolhas, tomar partido, dar vozes a quem lhe parecesse mais pertinente. Escolher entre diversos personagens criados sobre esses personagens da vida real de acordo com as ideologias, visões de mundo e paixões dos diversos autores que já escreveram sobre todos eles. 

Diferente de uma biografia - outro ramo bem trabalhado por Gallo ao longo de sua carreira -, aqui não há espaço para visões conflitantes sobre um mesmo personagem, a não ser na visão dos próprios personagens. A estrutura da narrativa escolhida pelo autor não permite. Isso fica claro logo no início do primeiro livro, O Povo e o Rei (1774-1793), o qual começa abordando o primeiro dos maravilhosos personagens da revolução, o rei Luis XVI, de suas origens familiares ao momento em que sua cabeça rola entre a navalha nacional e o povo de Paris. Max Gallo escolhe um Luis XVI diferente do déspota insensível aos sofrimentos ou do simples idiota à la Dom João VI que tradicionalmente são apresentados nos livros escolares e documentários televisivos. Apesar de realmente haver bem pouquinho de um e de outro em sua construção da personalidade do rei, a visão apresentada no livro é positiva, generosa, piedosa. Dependendo da visão de mundo do leitor, este pode até chegar a sentir pena do rei ou, por outro lado, raiva do autor. Os tipos de sentimentos que não se esperaria que um leitor sentisse com um livro acadêmico de História. Aí o diferencial da Revolução Francesa de Max Gallo para as outras, com a vantagem de ter sido escrita por alguém com real conhecimento acadêmico e um ritmo narrativo excelente.

Mesmo parecendo ser Luis XVI o personagem predileto do autor, ao qual é dedicada a maior parte do primeiro volume, é óbvio que aparecem no restante desse o do volume 2 - Às Armas, Cidadãos! (1793-1799) - outros tantos personagens que tornam a Revolução Francesa um evento de forte fascínio dentro da História, como Robespierre, Maria Antonieta, Danton, Marat, Napoleão Bonaparte e diversos anônimos com papéis menos memoráveis, porém fundamentais na guinada da história que foi a revolução. Afinal, quem determinou acontecimentos importantes naquela França em ebulição senão as mulheres rudes, maltrapilhas, enraivecidas que trabalhavam no mercado de peixe e arrancaram a família real à força de Versalhes? Não foram os trabalhadores urbanos que se tornaram o braço armado da revolução, os sans-cullotes? Da boca de um patriota que não tomou para si nenhuma parte da fama que fez com que os líderes gravassem seus nomes nos livros (e perdessem suas cabeças na guilhotina) é que saiu um pronunciamento que traduz perfeitamente o sentimento revolucionário: "Estamos em nossa casa, temos a febre quente da liberdade que faz enfrentar todos os perigos e defendemos tudo o que temos de mais caro: nossos lares, nossas mulheres, nossos filhos e sobretudo a liberdade, que é uma palavra mágica, que nos faria mover o universo". 

Em entrevista ao site da L&PM, sua editora no Brasil, Max Gallo afirmou que um dos motivos para o sucesso de seu livro foi justamente sua escolha em dar voz aos personagens, fugindo das interpretações posteriores. A visão é contemporânea à revolução, extraída de diários, jornais, ou seja, o que os historiadores chamam de fontes primárias. E essas impressões vão do rei a um simples livreiro chamado Rouault. O resultado é um livro delicioso, sobretudo para amantes da História, e no fim espera-se mais - não que fique faltando nada sobre a revolução em si, mas o leitor satisfeito vai se sentir como uma criança que quer que a história continue. E como não se trata de um conto de fadas, como ninguém vive feliz para sempre, ela realmente continua, na figura de Napoleão Bonaparte e sua aventura pela Europa. Bem, Max Gallo também escreveu uma biografia desse personagem, e já existe uma edição no Brasil...

Max Gallo nasceu em Nice, em 1932. Além de historiador e escritor, foi jornalista, participou ativamente da política de seu país no Partido Socialista Francês e é membro da Academia Francesa desde 2007. Ao longo de sua vida, se interessou por vários temas de História, da Roma Antiga à Segunda Guerra Mundial, mas de qualquer forma, segundo suas próprias palavras, "Escrevi uma tese, muitos artigos, etc, mas o que gosto de fazer, no fundo, é contar a História como um romance". Os leitores agradecem.

Editora: L&PM
Páginas: 395 + 391
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

ps: Marcelo, obrigado pelo empréstimo do livro!

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Mente Espontânea - Allen Ginsberg

Conhecer a vida de um autor, suas experiências, ideias e posições perante sua realidade, é sempre vantajoso para quem aprecia sua obra e busca maior compreensão sobre ela. No caso de alguns esse conhecimento é menos necessário, de outros mais, porém o que dizer da obra poética de Allen Ginsberg, que é basicamente tudo o que o poeta beat experimentou e viveu nos anos mais intensos da história recente da humanidade? Uma biografia ou um livro de memórias poderia ser bastante proveitoso para tal fim, mas no caso de Ginsberg, uma cabeça brilhante que funcionava sempre a mil por hora, me pareceu bem adequado o lançamento de Mente Espontânea - Entrevistas 1958-1996, livro no qual suas memórias e posicionamentos acerca da política, sexualidade, religião e os mais variados temas foram capturados no calor das discussões e após perguntas imediatas, sem tempo para pensar o que dizer para os entrevistadores, seguindo o lema budista tão apreciado pelo fiel seguidor de seus preceitos que Ginsberg foi: primeiro pensamento, melhor pensamento.  

Mente Espontânea é uma coletânea de trinta entrevistas nas mais diversas fases de sua vida, nas quais diversos assuntos são abordados, pelos mais variados tipos de entrevistadores (de ativistas gays a reacionários religiosos ultraconservadores, e até um interrogatório em um julgamento). Seus pensamentos e interesses podem variar de acordo com o ano da entrevista, mas a franqueza em suas respostas e o despudor para abrir sua privacidade a estranhos são as mesmas em qualquer momento, seja explicando métodos de meditação ou divagando sobre o pênis de Jack Kerouac. Ao mesmo tempo em que Ginsberg abre sua mente para seus leitores, histórias e lembranças surgem, elucidando diversas passagens de poemas que podem parecer obscuros numa primeira leitura. 

É verdade que de trinta entrevistas não podemos considerar todas excelentes, já que alguns temas podem não agradar a todos - utilizar uma entrevista inteira para, por exemplo, explicar aspectos técnicos de poesia não é bem a coisa que alguém que não é poeta de ofício vá se interessar -, mas a maioria delas é um deleite para os fãs de Ginsberg e, mais do que isso, tais entrevistas são essenciais para os que desejam se aprofundar em seu universo e do movimento beat em geral. É uma pena que a obra de Allen Ginsberg não seja tão difundida no Brasil, até porque, como eu já disse anteriormente, seu trabalho é bem atrelado à sua realidade e sua linguagem é deveras heterodoxa para uma tradução adequada, mas eu recomendo o esforço de pelo menos se tentar conhecer esse grande poeta que a cada dia me encanta mais com seus trabalhos revolucionários que estou conhecendo mais profundamente aos poucos, processo que se intensificou mais ainda depois da leitura dessa coletânea.

Editora: Novo Século
Páginas: 615
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

p.s.: o livro chegou a mim com a seguinte dedicatória: "Acredito em fazer por merecer nosso caminho, mas também acredito em um presente inesperado. - Borboletas - Charles Bukowski" "Obrigada por surgir. Da sua." - Obrigado digo eu, boba...

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Carrie, a Estranha - Stephen King

Stephen King é um dos autores mais bem sucedidos do mundo. Inúmeras adaptações de suas dezenas de livros e centenas de contos já foram produzidas para cinema, tv e quadrinhos, e certamente você já viu alguma coisa como Cemitério Maldito, O Iluminado, Colheita Maldita, ou mesmo os menos macabros como Conta  Comigo, À Espera de um Milagre e Um Sonho de Liberdade. Eu pelo menos cresci vendo seus filmes (os mais macabros, quero dizer) e ouvindo bem alto no meu quarto Pet Sematary (pedido pessoal do autor para que os Ramones criassem a música tema do filme), mas nunca tinha lido nenhum de seus livros. Resolvi tirar a limpo esse débito com seu primeiro livro publicado, Carrie (que aqui no Brasil inclui o subtítulo A Estranha desde que o primeiro filme foi lançado).

Esse livro foi escrito no início da década de 1970, quando King ainda era um escritor amador. Insatisfeito com mais uma decepção no difícil trajeto para o sucesso, ele joga fora o manuscrito de Carrie, mas sua mulher recupera o documento e o convence a tentar  a publicação mais uma vez. O quanto disso é verdade e o quanto é lenda eu não sei, o fato é que a partir de então sua carreira engatou a marcha e, dois anos depois, seu livro já estava adaptado para o cinema com grande repercussão e ótima aceitação do público, se tornando referência no cinema e na literatura de suspense e terror.  

Talvez o sucesso tenha a ver com temas abordados e a forma de como a história foi contada. Diferente de outras criações em que o sangue e a violência são por si só a atração para consumidores ávidos por esses produtos, Carrie se baseia em meios mais profundos e bem trabalhados, mas sem que haja falta de violência e sangue - pelo contrário, o sangue é até um dos elementos fundamentais na trama. Um dos temas é o fanatismo religioso, que até voltaria a aparecer em Colheita Maldita, por exemplo, e certamente não foi uma novidade para a literatura e o cinema de terror (me lembro de O Bebê de Rosemary agora). Contudo, outra questão tem mais destaque, e até onde sei nunca tinha sido levantada na forma de crítica na cultura pop: o bullying, esse elemento tão presente na cultura norte-americana (bem como no resto do mundo ocidental, porém em menor grau). Talvez pela extrema competitividade existente na sociedade norte-americana, o bullying fosse algo tão corriqueiro naquela época que chegava a ser aceito como normal, o que me parece não ter deixado de existir até hoje, apesar de não ser mais tão aberto como outrora. Tanto que, uma das ofensas mais comuns entre eles é a palavra loser (perdedor).

A história se passa em uma cidade minúscula no interior dos Estados Unidos, daquelas bem estereotipadas, onde todos se conhecem e não há nada para os jovens fazerem além de sexo e uso de drogas e álcool. Carrie é uma adolescente de 16 anos com sérios problemas psicológicos, resultado de uma criação abusiva e repressiva por sua mãe fanática religiosa e dominadora. Reclusa e totalmente diferente de seus pares, a menina é constantemente alvo de piadas e gozações. Mas há algo em Carrie que a diferencia dos demais jovens espalhados por todo o país na mesma situação de humilhação que ela passa: desde seus primeiros anos de vida, ela apresenta uma estranha reação ao estresse emocional, despertando poderes sobrenaturais (porém, o interessante é que existe uma explicação científica para isso, e alguns seres humanos, apesar de poucos, já haviam apresentado). Após a humilhação derradeira no baile de formatura da escola, Carrie é tomada por uma fúria sem limites que desperta o nível máximo de seus poderes - a famosa cena do baile, que acredito que qualquer um pelo menos já tenha ouvido falar.

Stephen King é um escritor de histórias que algumas pessoas podem não apreciar e não dar valor, mas há que se levar em conta que, apesar de temas não tão sérios e sem comparação com os grandes nomes da literatura, sua escrita tem qualidade, e o livro prende a atenção do leitor, mesmo já sabendo o que vai acontecer. A história é contada com uma narração tradicional em terceira pessoa mesclada com trechos de livros fictícios sobre o incidente (um relato de uma sobrevivente, a transcrição do inquérito oficial e trabalhos de especialistas no assunto), uma narrativa original. Carrie é uma leitura interessante, bacana mesmo para quem não é aficionado nesse estilo, mas parte da bibliografia básica para fãs de terror e suspense.

Editora: Suma de Letras (Objetiva)
Páginas: 200
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *